O extremismo do discurso de ódio e os equívocos acerca da liberdade de expressão
Jozivan Guedes
Professor do Depto e do PPG Filosofia UFPI e membro do GT Teorias da Justiça da Anpof
14/05/2025 • Coluna ANPOF
Em colaboração com GT Teorias da Justiça da Anpof
A questão precípua inicial aqui é a seguinte: qual é a tarefa fundamental da filosofia no Brasil em relação ao enfrentamento do discurso de ódio e do extremismo? Poderíamos em tom provocativo e destituídos da ingenuidade mítica da conjectura do(a) filósofo(a) como um ser racional, perguntar se ela [a filosofia] tem legitimidade para tal, porém, sabemos que em termos da necessária autocrítica, por ser institucionalmente feita de humanos de carne e osso (movidos por tendenciosidades, paixões, vicissitudes e extremismos) e, por isso, falhos, a filosofia brasileira como qualquer outra filosofia mundial ou ciência, jamais ocupará um lugar sagrado e imaculado no panteão, haja vista seus muitos problemas. Todavia, mesmo ciente de seus problemas internos, enquanto instância crítico-reflexiva ela não pode se eximir da ponderação acerca de temas conjunturais relevantes que permeiam a sociedade, como é o caso do discurso de ódio.
Durante a Covid-19, tínhamos a impressão utópica de que, após a pandemia, seríamos mais fraternos, solidários e humanos uns com os outros. Todavia, as coisas recrudesceram e as diversas faces da violência mostraram-se mais explícitas em guerras e conflitos, como por exemplo, entre Rússia e Ucrânia, Israel e Palestina, para citar os conflitos mais emblemáticos atualmente.
Uma outra guerra se intensificou em plena pandemia nas redes sociais, movida sobretudo por discursos odiosos e fake news, de modo que as polarizações da vida real foram incrementadas em níveis exponenciais na vida virtual (second life). Isso implica que, do ponto de vista filosófico, é plausível afirmar que a humanidade vive um tensionamento entre progresso tecnológico e definhamento ético das relações a ponto de uma total ruptura.
Para aqueles que normalizam o discurso de ódio, o seu ponto justificatório plasmado numa racionalidade instrumental consiste em dizer que esse tipo de “discurso” faz parte ou é um componente imprescindível da liberdade de expressão, como se nesta coubesse todo tipo de manifestação, inclusive as mais violentas e aniquiladoras possíveis.
Entretanto, é preciso uma elucidação filosófica sobre essa posição equivocada acerca do extremismo do discurso de ódio e da liberdade de expressão:
(i) O discurso de ódio per si não é discurso, mas proferimentos de sentenças abusivas e vexatórias que carregam consigo posições extremistas de anulação do outro e, nesse sentido, colapsam qualquer possibilidade de diálogo. Portanto, ele é, na sua raiz, antidiscursivo e, consequentemente, é um erro chamá-lo de “discurso”; “discurso de ódio” é uma contradição em termos (contradictio in terminis).
Como bem afirma a filósofa valenciana Adela Cortina no seu livro Aporofobia, o discurso de ódio é contraditório porque é ausência de discurso à medida que é egocêntrico, contradiscursivo e assimétrico. É egocêntrico porque o agressor anula o outro enquanto agente comunicador, implicando a dissolução e o declínio da intersubjetividade; é contradiscursivo porque substitui o discurso pela violência; e é assimétrico porque estabelece uma relação desigual e verticalizada entre o agressor e a vítima.
(ii) Além disso, o outro equívoco extremista consiste em vincular o discurso de ódio à liberdade de expressão. Se olharmos para a filosofia moderna, vemos que em Hobbes há a clara defesa da liberdade negativa pensada como ausência de impedimentos externos para ação, ou seja, sou livre para agir desde que não viole a liberdade de outrem; Locke já advertira o cuidado para não confundir liberdade com licenciosidade para fazer tudo que se quer e de acordo com o bel-prazer dos caprichos individuais em detrimento de outrem; Kant fez o mesmo ao evocar a necessidade daquilo que chamo de “liberdade constitucionalmente regrada” ou “liberdade normativa”, isto é, a defesa republicana da liberdade contida nos limites da constituição e sob a égide do imperativo moral da não instrumentalização da dignidade humana.
Subjacente a isso está a ideia de razão pública, segundo a qual a liberdade de expressão deve ser mediada racionalmente, em oposição a proferimentos odiosos que são antidiscursivos e que corporificam a desrazão e a violência. Rawlsianamente falando, o “discurso” de ódio não passa pelo crivo da razoabilidade porque ele colapsa a possibilidade institucional de uma sociedade bem-ordenada assentada no senso de justiça e na capacidade respeitosa de os indivíduos defenderem uma concepção de bem, uma cosmovisão. Vale aqui citar também Rainer Forst e a sua crítica do poder arbitrário pensado como poder violento que não passa pelos crivos da reciprocidade e da generalidade.
Presume-se que são muitos os caminhos filosóficos para demonstrar o extremismo do discurso de ódio e os equívocos daqueles que tentam vinculá-lo à liberdade de expressão. Um ponto prático importante é que cumpre à filosofia o papel social de refletir o tema em conjunto com a sociedade, a ponto de a sua indiferença reforçar o fortalecimento de um ethos polarizado pautado no ódio, na desrazão e na violência, o que pode danificar as relações entre os indivíduos e colapsar os valores de uma democracia institucionalmente sólida.
A questão fundamental que permeia esses desafios deve ser articulada no sentido de propor estratégias concretas de ação para o enfrentamento do discurso de ódio e para a vivência correta da liberdade de expressão. Em Aporofobia, Adela Cortina propõe uma dupla saída ética para tal enfrentamento: uma kantiana e outra hegeliana que se fundem dialeticamente, a saber, (i) formar o indivíduo para a respeitabilidade mútua tomando por base o pressuposto moral kantiano da universalidade da dignidade humana, e (ii) para o senso comunitário da eticidade hegeliana, o que implica combater o atomismo e o individualismo modernos. Indo na contramão do neoliberalismo solipsista, ela tenciona a integração social com base no senso de coletividade e na não-instrumentalização de outrem.
Nesse sentido, observando o hic et nunc, é de suma importância que a filosofia brasileira assuma essa vanguarda reflexiva e formativa acerca do extremismo do discurso de ódio e dos limites da liberdade de expressão, possibilitando o diálogo interno entre as suas diversas áreas e o diálogo externo com a sociedade civil e interdisciplinar com outras áreas, objetivando promover a reflexão, o debate e a propositura de estratégias práticas de enfrentamento da questão aqui abordada.
Essas estratégias podem incluir publicações bibliográficas (livros, artigos, capítulos, teses, dissertações, TCCs etc.), discussões em GTs, eventos descentralizados e regionalizados, produções artísticas, debates em sala de aula, documentários, vídeos que circulem em redes sociais tradutíveis ao alcance popular, dentre outros mecanismos que demonstrem a atuação da filosofia brasileira face às múltiplas violências do extremismo do discurso de ódio e do mau uso da liberdade de expressão.
Isso tudo pressupõe um alinhamento e um protagonismo da ANPOF, da Coordenação de Área de filosofia na CAPES, dos Programas de Pós e das Graduações em filosofia nas diversas regiões do Brasil, do importante trabalho da filosofia no Ensino Médio, de modo que se crie toda uma sistemática e organicidade colaborativa da filosofia brasileira no enfrentamento de ideologias extremistas. Assim, a filosofia cumprirá um papel emancipatório fundamental à sociedade brasileira e à construção de um ethos social mais solidário e inclusivo.
A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.