O fim da esfera pública

Felipe Cardoso Silva

Doutorando (Filosofia/USP)

14/02/2022 • Coluna ANPOF

Em sua acepção típica, a esfera pública se caracteriza por três elementos: pelo uso público da razão, através do qual o assentimento é obtido por meio de argumentos; pela exposição livre do debate, na qual se confere visibilidade ao objeto em disputa e às posições conflitantes; e pela paridade no uso da palavra, em que a qualidade de cada interlocutor é medida tão somente pela pertinência e consistência de seus argumentos, não por sua posição social, política ou econômica. 

A esfera pública é uma ideia reguladora para as interações sociais, não uma situação efetiva. Por preconceitos ideológicos se recusa o assentimento ao melhor dos argumentos; por artimanhas corporativas se disfarça o objeto de interesse público; e por arrogância aristocrática se amordaça a voz de subordinados, ou se consente aos disparates de superiores. Trata-se de dificuldades compreensíveis, afinal, não vivemos em uma república de anjos. Não obstante, as perspectivas propostas para uma esfera pública efetiva ainda são desejáveis como um modo de construir e consolidar a experiência democrática. 

Discutir o fim da esfera pública pode significar duas coisas, ou se versa sobre seu propósito, objetivo, finalidade; ou sobre seu término, encerramento, demolição. 

Em uma sociedade democrática, a esfera pública tem por finalidade mediar as relações entre os portadores do poder e a sociedade civil, através da análise e da crítica de suas palavras, posições e atos no que concerne ao exercício do poder e seu impacto na sociedade. Nesse sentido, os representantes do poder abrangem os representantes eleitos, portadores provisórios do poder político, e os portadores de poder econômico e do poder político em sentido amplo, como líderes de movimentos sociais e figuras públicas de relevo. Mas há um percalço nesta relação, qual seja, há mediação entre sociedade civil e poder, construída por partidos políticos, sindicatos, organizações religiosas e imprensa, instituições também portadoras de poder, o que faz com que a realização da esfera pública plena esteja condicionada às suas ingerências. 

Em uma sociedade digital, tornou-se possível, com o advento das redes virtuais de comunicação, articular demandas sociais dispersas de forma altamente eficiente e expressas sem instituições mediadoras. Compreendeu-se que as perspectivas criadas pelo ambiente virtual permitiriam a instauração de uma democracia digital, em que a representação direta construiria esfera pública efetiva. Nada mais ilusório. As redes sociais não são expressões virtuais da esfera pública, mas expressões virtuais do espaço privado. Através da confluência ente bancos de dados e processadores de alto desempenho, as redes oferecem potenciais clientes aos nichos de mercado. 

Ao se utilizar esses mecanismos para expressar reivindicações da sociedade civil, desaparece o uso público da razão e a exposição livre do debate. Todo debate público é absorvido pelos diversos grupos de interesse e interpretados segundo critérios internos aos grupos. Essa situação cria esferas públicas artificiais que não respeitam as condições de realização da esfera pública efetiva, ao mesmo tempo que simulam realizá-la. Como consequência, parece que a busca pela finalidade da esfera pública encontra um ambiente que acusa seu fim. 

Será nossa responsabilidade repensar a esfera pública neste mundo digital, sob pena de perdermos as condições da própria existência da democracia.