O pensamento de Roberto Mangabeira Unger: A filosofia como potencialização da vida ordinária

Tiago Medeiros

Professor de Filosofia do IFBA

07/06/2023 • Coluna ANPOF

A obra de Roberto Mangabeira Unger, o filósofo brasileiro mais lido no mundo, é ampla, profunda e diversificada. Acumulando quase cinquenta anos, ela ostenta rara amplitude temática. E não há quem tenha lido seus livros que despreze a densidade cultivada pela polivalência que os caracteriza. Proponho, neste breve ensaio, uma interpretação geral da obra de nosso Mangabeira enquanto costurada pela premissa filosófica da potencialização da vida ordinária.  

Transcendência e vida;

Para Mangabeira, a ideia central da humanidade é a do ser aprisionado em contextos e circunstâncias que nunca fazem jus à sua infinitude imaginativa, criativa e apaixonada. Essa ideia teria precedência histórica em versões sagrada – nas doutrinas das grandes religiões monoteístas: Judaísmo, Cristianismo e Islã – e secular – nos projetos de emancipação social e pessoal inscritos nas doutrinas políticas e morais novecentistas: democracia, socialismo, liberalismo e romantismo.  

A versão sagrada da ideia afirma a transcendência do espírito em relação ao mundo circundante, à sua situação. A versão secular, a tese de que cada sociedade é mais do que os arranjos institucionais e correntes de opinião que a atravessam e a ordenam no presente. A face romântica dessa mensagem sustenta que a personalidade de um indivíduo é irredutível aos papeis e hierarquias dos domínios sociais e culturais em que ela opera; sustenta, ademais, que o amor é a sua experiência radical de autoconhecimento e autorrealização. 

Tais teses sumarizadas são convites à experiência da transformação, a dar-se na experimentação do eu e da sociedade. Mas, transformação real não é mera mudança de estado, como a que se pode reconhecer nos fenômenos físicos. É a ampliação do escopo e do espaço para a conduta humana no mundo. Transformar-se não é apenas deixar de ser o mesmo, é deixar de ser menor. O valor que mobiliza a premissa é o valor do engrandecimento.

O pensamento inspirado pelo ideal da grandeza tem sua tradução na potencialização da vida humana, afinal, sempre podemos mais. Nos trabalhos de Mangabeira, ela figura como intensificação das experiências, dilatação dos domínios de ação, aprimoramento das condições e meios, expansão de nossa influência sobre as coisas, desenvolvimento das capacitações, triunfo da imaginação, vulnerabilidade radical ao outro, reconciliação com as paixões. Abaixo, um passeio sobre algumas das frentes de atuação do pensador brasileiro que expressam a premissa da potencialização da vida.

Instituições: experimentalismo jurídico e econômico;

A teoria social é a área que mais ocupa as páginas na obra mangabeiriana. O filósofo recupera a ideia moderna da sociedade como artefato: as estruturas que a molduram são conflitos arrefecidos que tomam a forma de instituições. Estas fornecem relações, rotinas e práticas que definem um mundo social singular. Mas são, em essência, política congelada. No plano do pensamento social, a potencialização da vida reside em enfatizar as instituições como entidades de plasmação e articulação dos domínios sociais variados: por elas, a transformação é possível; sem elas, mera abstração. 

Ao contrário do marxismo, que restringe às estruturas profundas movidas historicamente a faculdade da transformação, e do neoliberalismo, que omite a contingência das estruturas, naturalizando a configuração das sociedades existentes e obliterando o ímpeto por mudança nelas, a perspectiva de Mangabeira é experimentalista: prescreve reformas revolucionárias para propiciar transformações radicais desde já, porém, não de uma só vez. A transformação real se daria pela inovação institucional que deflagra reações em cadeia.   

No mundo moderno, mudar as instituições é mudar o conteúdo jurídico em que elas são desenhadas. O pensamento jurídico, constrangido pelo formalismo, deu poucas aberturas ao entendimento do direito enquanto fenômeno inseparável dos projetos da sociedade em seu respectivo tempo. O direito moderno é um órgão da sociedade moderna, não um campo de especulações etéreas sobre contratos e condutas. Para Mangabeira, ele é a forma institucional da vida de um povo, o reflexo dos interesses e ideais de uma sociedade exibidos em seu pormenor. 

Essa compreensão, que avaliza um experimentalismo também jurídico, esbarra, contudo, em uma aporia concernente à propriedade. A propriedade costuma ser estreitamente concebida como pública ou privada. Mas, Mangabeira insiste, é possível criar regimes jurídicos que redesenhem seu conteúdo, permitindo a existência de formas temporárias, compartilhadas e alternativas de propriedade. Regimes tais assegurariam a diferentes agentes econômicos, por exemplo, o direito de usar parte dos recursos produtivos disponíveis para ampliar o acesso da sociedade a bens e serviços, sem que fosse necessária uma aventura revolucionária.  

Potencializar a vida ordinária, na economia, passa, portanto, pelo expediente jurídico da imaginação institucional. Com ele, conviria ir além e democratizar as formas mais avançadas de produção. 

Mangabeira escreve que, em todas as economias nacionais do mundo moderno, há uma franja de práticas produtivas densas em tecnologia e em ciência, a chamada economia do conhecimento, que são o que há de mais avançado em economia hoje. Para aproveitá-las, há que se criar dispositivos institucionais que estimulem e facilitem, com expertise e financiamento, a penetração desse perfil produtivo nas empresas e nos negócios de pequeno e médio porte. Uma economia do conhecimento suficientemente financiada e acessada pelas pessoas comuns potencializaria o agente econômico, ampliaria o alcance da produtividade no nível o mais local em que os pequenos atuam, cooperando e competindo entre si, e aumentando a produtividade global da sociedade.

Paixões, existência e realidade do tempo.

Na teoria da personalidade, a potencialização da vida começa pela revisão da ideia de paixões. As paixões são, para Mangabeira, o vínculo não-instrumental entre as pessoas, os encontros interpessoais que ocorrem por baixo dos papeis e posições sociais estabelecidos. Elas expõem, em sua franca manifestação, a vulnerabilidade do eu aos outros. 

Diferente das tradições que consideram a paixão uma ameaça oposta à razão ou à convenção social, Mangabeira entende que elas são o canal para uma participação mais ativa, engajada e profunda, na vida. Adensar passionalmente a relação com os outros não é aniquilar o eu, mas possibilitar sua constante inspeção íntima e, com isso, a experiência de ser único enquanto indivíduo e de estar seguro num mundo em que tanto se necessita dos outros quanto se os teme. A vulnerabilidade não fragiliza a personalidade, antes a empodera.

Para que esse empoderamento encontre afinidade em outros discursos existenciais e morais, como os das religiões, Mangabeira arrisca uma tese sobre o que elas precisariam incorporar. A religião do futuro teria por desafio central admitir que o nosso engajamento na vida é total quando aceitamos a morte e não a mitigamos em promessas de salvação. Isso é viver muitas vidas em uma só vida e morrer apenas uma vez, sem esperar recompensa posterior. Eis uma visão da condição humana amparada pela crença na irrevogabilidade da realidade do tempo.  

Que tipo de concepção sobre o tempo é conciliável com essa experiência elementar? Ora, aquela que consagre em vez de relativizar, sugerindo a existência de instâncias supratemporais, a mudança. No campo da física geral e da cosmologia, as ideias mais influentes têm premissas filosóficas que precisariam ser descartadas. 

A primeira premissa é a da ontologia clássica. Ela afirma que o tempo é real, mas não completamente real, porque a estrutura básica do mundo e da natureza e as regras ou leis ou constantes ou simetrias que a governam estão isentas da temporalidade. Nessa tradição, as condicionantes da matéria poupadas do tempo aparecem como o que há de “mais real”. De Aristóteles a Einstein, a premissa filosófica essencial sustenta uma taxonomia permanente do ser, dos componentes derradeiros da realidade que presidem o cosmo. 

A segunda premissa seria o monismo especulativo, proeminente na Índia antiga e que representado no pensamento ocidental por metafísicas como a de Schopenhauer. Aqui, as distinções e as mudanças no mundo são ou ilusórias ou superficiais. Há uma expressão radical desse monismo no budismo primitivo, como também há uma versão qualificada no pensamento platônico – filosofias para a quais as coisas mutáveis e distintas não são irreais, são “menos” reais. Põe-se na realidade última os atributos de unidade e atemporalidade. Em síntese, ambos os paradigmas advogam uma associação direta entre realidade e atemporalidade: quanto mais real, menos temporal.  

A posição de Mangabeira, que encontra parceria em autores como Alfred Whitehead e Henri Bergson, seria a de um naturalismo temporal: todas as coisas que existem no mundo são mutáveis. O universo tem uma estrutura definida, porém, nele, mais cedo ou mais tarde, tudo muda, inclusive a própria mudança. Nada está isento do tempo, nem as supostas leis da matéria. As ciências da vida e da evolução que recorrem à história natural negando haver uma taxonomia permanente dos seres dão respaldo a essa tese, ao atribuir mais importância à sequência do que às leis naturais e ao considerar frouxas as relações causais. Eis o nosso universo: onde as “regularidades” estão sujeitas à mudança, evoluindo junto com as coisas mutáveis.  

Se há um valor que traduza o ideal da grandeza no pensamento de Mangabeira, é a potencialização da vida. Em qualquer domínio do pensamento e da ação, ela retira os obstáculos para a transformação das coisas: nosso caráter, nossa sociedade, nosso destino, nosso mundo. A vida plena está na reconciliação humana com a transformação.  

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