O que significa "reificação" A atualidade de um conceito de G. Lukács

Maurício Vieira Martins

Professor do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da UFF

22/06/2023 • Coluna ANPOF

Certa vez o filósofo Gaston Bachelard afirmou que a riqueza de um conceito pode ser aferida por seu “poder de deformação” (puissance de déformation [1]). Inicialmente enigmática, a afirmativa bachelardiana ganha seu sentido quando ele nos mostra que um conceito fecundo consegue ultrapassar - e agora as palavras são minhas - o perímetro dos temas para os quais foi inicialmente concebido para auxiliar na formulação de outros diferentes, mas que se enraízam numa certa matriz geradora.

As considerações de Bachelard nos vêm à mente tendo em vista os cem anos de publicação de História e consciência de classe, livro do filósofo húngaro György Lukács publicado originalmente em 1923, com vasta repercussão na filosofia e nas ciências humanas do século XX. Não sendo possível neste breve escrito apresentar as diferentes questões presentes na obra, mencionarei apenas a riqueza de uma categoria que aparece num de seus ensaios, a Verdinglichung, usualmente traduzida para o português como reificação (ou coisificação). Mas o que significa, afinal, um processo de reificação? [2] 

Trata-se de uma característica marcante de uma sociedade capitalista que transforma continuamente os diferentes objetos nela produzidos em mercadorias, bens a serem alienados no mercado. Apoiando-se na argumentação desenvolvida por Marx em O capital, Lukács enfatiza as consequências simultaneamente objetivas e subjetivas de um processo em que relações humanas assumem - nas palavras do próprio Marx - a “forma fantasmagórica de uma relação entre coisas." [3]

Também Lukács nos mostra que esta fantasmagoria, longe de ser apenas uma ilusão, adere firmemente à própria realidade: concluída a produção de mercadorias, sua origem humana - produto de uma atividade laboral - acaba por ser ocultada dentro de um mecanismo impessoal. Enquanto em sociedades pré-capitalistas a dimensão pessoal das relações econômicas podia ser visualizada com mais clareza, o avanço da mercantilização e da generalização do uso do dinheiro em todas as interações sociais fazem com que torne-se cada vez mais difícil “penetrar nesse invólucro reificado” (p. 197),

Para melhor visualizar o que está aqui em jogo, tomemos um exemplo simples. Quando caminhamos num shopping center e vemos expostos um par de tênis de marca sobre um pequeno pedestal giratório, iluminado por um foco de luz, deparamo-nos com a reificação em sua forma talvez mais acabada. O que nos aparece (e sublinhamos este aparecer como momento constitutivo de um certo tipo de ser histórico) é um objeto seccionado do trabalho humano que lhe deu origem. O brilho fetichizado da mercadoria oculta o trabalho anônimo e explorado de homens e mulheres responsáveis por produzir bens que no mais das vezes sequer conseguem usufruir. Com frequência, será preciso um deslocamento de milhares de quilômetros para encontrarmos os reais produtores daquilo que vemos exposto com destaque nas vitrines. A rigor, nem seria necessário invocar os produtos expostos num shopping para visualizar o que seja uma reificação: a massa quase infinita de mercadorias produzidas diariamente na sociedade capitalista carrega as marcas de uma alienação dos seres humanos frente aos objetos que eles produziram.

Estas simples considerações evidenciam que Lukács não entende a reificação como fazendo parte de uma suposta condition humaine geral, encontrável em qualquer tempo e lugar. Longe disso. Uma das características mais marcantes da tomada de posição lukácsiana é a ênfase no caráter histórico da reificação e do fetichismo (categoria que lhe é correlata): “a questão do fetichismo da mercadoria é específica da nossa época, do capitalismo moderno” (p. 194). Se é verdade que relações de exploração entre grupos humanos são muito antigas na história, cumpre atentar para a feição distintiva que elas assumem na sociedade burguesa: tudo se passa como se relações abstratas, impessoais (que estabelecem equivalências monetárias entre mercadorias diferentes) suplantem o lugar que antes cabia a seres humanos. Seres que passam a sofrer as consequências alienantes desta mercantilização universal:

A quantificação dos objetos e o fato de serem determinados por categorias abstratas da reflexão manifesta-se na vida do trabalhador diretamente como um processo de abstração, que se efetua nele próprio...(p. 336)

Esta consideração fornece a oportunidade de esclarecer que, embora a incidência da reificação atinja todas as classes da sociedade capitalista, uma ressalva decisiva deve ser feita. Há uma assimetria marcante entre a posição dos explorados e a da classe de proprietários desta sociedade: os primeiros assumem a carga mais brutal do sistema de alienações, daí Lukács afirmar que:  

A diferenca quantitativa da exploração, que para os capitalistas tem a forma imediata de determinações quantitativas dos objetos do seu cálculo, deve aparecer para o trabalhador como as categorias qualitativas e decisivas de toda sua existência física, intelectual, moral etc (p. 337)

Estas categorias qualitativas a que Lukács se refere relacionam-se diretamente ao sofrimento contundente das vidas expostas à reificação; em contrapartida, do ponto de vista empresarial capitalista, o que aparece são apenas números a serem quantificados. Por isso, quando no Brasil contemporâneo - que segue uma lógica encontrável em todo mundo - periodicamente são resgatados trabalhadores e trabalhadoras em condições de trabalho análogas às da escravidão, isso não deve ser visto como uma sobrevivência de um momento histórico anterior, que estaria em vias de ser superado. Pois na concorrência feroz entre diferentes segmentos empresariais, a necessidade de cortar custos é imperiosa, e chega-se até a reificação humana em sua forma mais brutal. Nossa contemporaneidade capitalista recria relações de outros momentos históricos, inscrevendo-as agora em sua lógica impessoal. 

       *   *   *

Não é preciso concordar-se com todas as questões levantadas por Lukács em História e consciência de classe. Pessoalmente, creio que o primeiro ensaio do livro - O que é marxismo ortodoxo? - não atravessou bem a prova do tempo: soa hoje problemática a defesa de uma ortodoxia marxista, mesmo que se possa argumentar que tal defesa se deu no contexto do embate com um ecletismo que diluía a lâmina cortante da obra marxiana. Em 1967, o filósofo escreveu um Prefácio que aponta para outros problemas do livro, incluindo uma referência ao “sectarismo messiânico”, vigente em seu grupo mais próximo nos anos 1920. [4]

Mas o devir de História e consciência de classe foi fecundo. Mesmo pensadores com um estilo pessoal e teórico distante de Lukács, encontraram nele um rico material para desenvolver suas próprias reflexões. Pensemos em Guy Debord, um autor que tematizou recorrentemente a função da proliferação de imagens presentes no que ele nomeava como uma sociedade do espetáculo. Quando Debord escreve que “O espectáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens” [5], o leitor de História e consciência de classe - citado explicitamente pelo autor francês - reconhecerá ali um trabalho sobre um motivo simultaneamente marxista e lukácsiano. O comércio abundante de imagens tem por substrato relações entre seres humanos, que aparecem metamorfoseadas em aparências supostamente dotadas de vida própria. Por óbvio, tanto Lukács como Debord viveram muito antes da vigência das chamadas redes sociais (Instagram, Facebook, etc), mas não deixa de ser instigante pensar no que eles teriam a dizer sobre um momento histórico onde a própria imagem de si - ou de um grupo - torna-se um objeto a ser exposto e passível de uma monetização. 

Com isso, retornamos agora à citação provocativa de Bachelard: a riqueza de um conceito mede-se pelo seu poder de deformação. Por tudo que se conhece de Lukács, provavelmente ele não gostaria de ser situado na companhia de Debord: tratam-se de opções e trajetos distintos no âmbito da filosofia do século XX. O que não impede que alguns conceitos de Lukács - o defensor da ortodoxia - tenham impactado fortemente mesmo pensadores tão heterodoxos como o autor de A sociedade do espetáculo. 

Quanto às possibilidades de se superar esta realidade que reifica tanto os indivíduos como até mesmo suas imagens, concluo com uma referência ao forte desejo de mudança do próprio fundador do materialismo histórico. Já em 1857, polemizando com os nostálgicos de um tempo passado, Marx escreveu com firmeza: “é tão ridículo ansiar por um retorno àquela plenitude original quanto crer que deve ser permanente este completo esvaziamento”.

[1] Gaston Bachelard. La formation de l'esprit scientifique. J. Vrin,  p. 61
[2] Discute-se aqui a reificação no sentido que a categoria adquiriu na teoria marxista (e não nas teorias da Gestalt, ou em seu sentido computacional mais recente)

[3] apud György Lukács. História e consciência de classe. Martins Fontes, p. 199

[4] Para o leitor que quiser conhecer a formulação madura de Lukács, é imprescindível o contato com a grande Ontologia que o filósofo escreveu ao final de sua vida: György Lukács. Para uma ontologia do ser social, vols 1 e 2. São Paulo: Boitempo. Busquei apresentar de modo sintético o primeiro volume desta obra em meu artigo “Ontologia social e emergência na obra do último Lukács”, Scientiae Studia”, vol. 11, 2013.

[5]Guy Debord. A sociedade do espetáculo. Edições Antipáticas, p. 9.

* Prof. Maurício recentemente publicou Marx, Spinoza and Darwin - Materialism, Subjectivity and Critique of Religion. Palgrave Macmillan, 2022.

 

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