O sexismo se diz de muitas maneiras

Amanda M. Alves Moreira

Doutoranda em Filosofia (Freie Universität Berlin)

01/06/2023 • Coluna ANPOF

A ideia de que o sexismo deve ser criticado com regularidade e veemência parece ter se tornado um lugar comum no Brasil. Acusações de que alguém é ou agiu de maneira sexista, machista, misógina ou a partir de uma masculinidade tóxica e frágil aparecem não apenas na academia e em espaços associados ao ativismo político, mas também em redes sociais e veículos de comunicação de massa. 

Motivado por esses fatores, nesta mesma coluna, Felipe G. A. Moreira publicou um texto onde defendia a necessidade de um critério razoável para a atribuição do predicado “sexista”. Para ele, um exemplo de critério razoável seria a pessoa estar comprometida com a tese de que “a essência das mulheres é inferior em relação a dos homens de modo que esses últimos devem ‘guiar’ as mulheres”.

Acusações de que alguém é ou agiu de maneira sexista são não apenas comuns, mas também relevantes, podendo levar a consequências emocionais, sociais, midiáticas, trabalhistas ou legais (por exemplo, atualmente se discute o Projeto de Lei 872/23 que criminaliza a misoginia). Assim, gostaria de começar com duas concessões a Moreira. Primeiro, ele está certo em buscar um critério razoável para a atribuição do predicado “sexista” e similares. Segundo, a condição que ele propõe realmente identifica sexistas. Por outro lado, ela é por demais restrita e parece insinuar que só existe uma forma de ser sexista. 

Nesta coluna, ilustrarei personagens que não satisfazem a condição para atribuição de “sexista” proposta por Moreira, mas que ainda assim merecem o título de “sexistas”. Não abordarei pessoas reais, mas, se essas ilustrações espelharem a realidade, teremos razões para acreditar que a criação de um critério razoável para a atribuição do predicado “sexista” e similares não é tão simples quanto Moreira parece insinuar e que o sexismo se diz de muitas maneiras. Por fim, indicarei o caminho para criação de um critério razoável mais abrangente que o de Moreira.

Para Moreira, a condição para atribuição de “sexista” envolve um comprometimento com uma conjunção de duas proposições, uma essencial e outra normativa (PN). Se traduzimos a proposição essencial em modal (PM), podemos concluir que o sexista original descrito por Moreira estaria comprometido com as seguintes proposições:

PM1. Mulheres são necessariamente inferiores aos homens.

PN1. Homens devem guiar mulheres.

Além disso, uma consequência plausível de PM1 é a seguinte proposição descritiva (PD):

PD1. Não existem mulheres que não sejam inferiores aos homens.

O sexista original não especifica o uso dos termos “mulher” e “homem”. Como nossos personagens são variações do mesmo, vamos manter essa ambiguidade1 ao longo da coluna. 

Agora, em primeiro lugar, consideremos um personagem A que negue PM1 e defenda a seguinte proposição:

PM2. Mulheres são contingentemente inferiores aos homens.

PM2 é metafisicamente mais fraca que PM1, pois implica que mulheres são inferiores por conta de um evento contingente, logo elas poderiam não ser inferiores. Algumas feministas (e.g., Beauvoir2, Rubin3 e Haslanger4) já disseram que, de certa maneira, faz sentido concluir que mulheres são inferiores aos homens porque não receberam as mesmas oportunidades. Aquele que acredita nisso (F) assume que o evento contingente que resultou na pretensa inferioridade feminina foi a falta de oportunidades, a conclusão sendo que se déssemos mais oportunidades às mulheres, elas superariam a sua inferioridade. Além disso, como F está comprometido com o feminismo, ele não adotaria PN1 ou PD1. Por outro lado, imagine que A concilie PM2 com PN1 e PD1, acreditando que o evento contingente que resultou na inferioridade feminina foi o desenvolvimento da espécie humana. Para ele, mulheres apenas superariam a sua inferioridade se editassem o seu DNA, fizessem cirurgias plásticas e passassem por terapias hormonais desenhadas para mimetizar corpos masculinos. Ele acha que essas mudanças serão possíveis em um futuro próximo - concluindo que ainda que não existam mulheres não inferiores, elas poderiam existir. 

Em segundo lugar, consideremos um personagem B que negue PD1: para ele, existem mulheres que não são inferiores aos homens. No entanto, ele acredita que elas são uma minoria. Tal como A, ele também adota PM2. Por outro lado, para ele, eventos mais contingentes que o desenvolvimento da espécie humana, como o desejo de homens particulares ou eventos históricos particulares, levaram mulheres a estar em uma posição de inferioridade. Assim, ele acredita que mulheres superariam a sua inferioridade se, por exemplo, homens particulares passassem por uma mudança de desejo ou novos eventos históricos particulares ocorressem. Ele acha que essas mudanças são possíveis, mas, no momento, o mais prudente é que os homens guiem as mulheres. Por conta disso, ele abraça PN1.

Em terceiro lugar, consideremos um personagem C que negue PN1 e adote a seguinte proposição:

PN2. Homens não devem guiar mulheres. 

C concilia PN2 com PM1 e PD1. Para ele, mulheres são necessariamente inferiores aos homens, mas eles não devem guiá-las. Como ele as vê como inferiores, ele crê que as mulheres que não são guiadas por homens estão fadadas ao fracasso e/ou são invariavelmente infelizes. No entanto, ele defende que os homens devem deixá-las padecer e sofrer as consequências da sua inferioridade.

Podemos criar mais personagens que estão comprometidos com diferentes combinações de proposições modais, descritivas e normativas (ver tabela) e que não satisfazem o critério para atribuição de “sexista” de Moreira. Podemos deixá-los de lado por agora, visto que o mais importante é reconhecer que, de acordo com o critério para atribuição de “sexista” proposto por Moreira, A, B e C (e outros) não seriam sexistas. Eles discordam das proposições modal, descritiva e normativa originais respectivamente. No entanto, ao ler suas descrições, somos levados a acreditar que eles também merecem a qualificação de sexistas. Podemos justificar nossa impressão a partir de três passos.

O passo 1 envolve reconhecer que diferentes conjuntos de proposições modais, normativas e descritivas podem servir para privilegiar homens e subordinar mulheres. A, B e C adotam conjuntos de proposições diferentes, mas, de alguma maneira, os três podem servir para privilegiar homens e subordinar mulheres. Assim, podemos concluir que o sexismo se diz de muitas maneiras. 

O passo 2 envolve entender que há graus de sexismo, pois conjuntos de proposições modais, normativas e descritivas podem servir (mais ou menos) para privilegiar (mais ou menos) homens e subordinar (mais ou menos) mulheres. Por exemplo, o sexismo de B é menos abrangente descritivamente que o de A, pois B acredita que existe pelo menos uma mulher que não é inferior aos homens. O reconhecimento da variação de graus nos permite diferenciar os oponentes profundos, que adotam conjuntos que podem servir (muito) para privilegiar (muitos) homens e subordinar (muitas) mulheres; os oponentes superficiais, que adotam conjuntos que podem servir (pouco) para privilegiar (alguns) homens e subordinar (algumas) mulheres e aqueles que podem ser chamado de aliados imperfeitos, pois combinam proposições sexistas com outras feministas.

O passo 3 envolve reconhecer que a criação de um critério razoável para a atribuição do predicado “sexista” e similares não é simples. Aceitar os passos 1 e 2 implica na aceitação de que “sexista” é um predicado vago e portanto vulnerável ao paradoxo de sorites. Assim, nos colocamos a seguinte pergunta (P):

P. A partir de qual limite uma pessoa passa a ser sexista?

Podemos assumir que o feminismo seja o oposto do sexismo. Agora, existem muitos feminismos contemporâneos5 e eles não possuem uma base de comprometimentos proposicionais comum. Os comprometimentos proposicionais de cada feminismo influencia o estabelecimento do limite. Como exposto, Moreira é demasiadamente restritivo - apenas um tipo metafísico tradicional é sexista. O limite defendido aqui seria um conjunto de proposições modais, normativas e descritivas que não possam servir para privilegiar homens e subordinar mulheres. Qualquer um que ultrapasse esse limite seria em algum grau sexista, mas essa variação de graus vai dos aliados imperfeitos aos oponentes profundos, passando pelos diferentes tipos de oponentes superficiais. O limite é um pouco obscuro, se, tal como nesta coluna, não especificamos as proposições, ou arbitrário, se tornamos as proposições robustas demais. Por outro lado, sua principal vantagem é o reconhecimento da complexidade do fenômeno ao diferenciar graus de sexismo a partir da avaliação dos conjuntos de proposições modais, normativas e descritivas que possam servir (mais ou menos) para privilegiar (mais ou menos) homens e subordinar (mais ou menos) mulheres. 

Como dito anteriormente, acusações de que alguém é ou agiu de maneira sexista são não apenas comuns, mas também podem ter consequências. Se o sexismo se diz de muitas maneiras e há graus de sexismo, há diferentes tipos de sexistas. Alguns são oponentes profundos das feministas, outros são oponentes superficiais e ainda existem aqueles que podem ser chamados de aliados imperfeitos. Não podemos reagir a todos da mesma maneira. 

1.  Há uma extensa bibliografia contemporânea sobre o significado de “mulher”. Para entender a variedade de posições, veja, por exemplo: Bettcher (2013), Byrne (2019) e Haslanger (2000). 

2.  “Sim, as mulheres, em seu conjunto, são hoje inferiores aos homens, isto é, sua situação oferece lhes possibilidades menores: o problema consiste em saber se esse estado de coisas deve se perpetuar” (Beauvoir, 2009, p.31).

3.  “O que é uma mulher do lar? Uma fêmea da espécie. Uma explicação é tão boa quanto a outra. Ela só se transforma numa criada, numa esposa, numa escrava, numa coelhinha da Playboy, numa prostituta, num ditafone humano dentro de determinadas relações. Apartada dessas relações, ela já não é a companheira do homem mais do que o ouro é dinheiro... etc. O que são, então, essas relações pelas quais uma mulher se transforma numa mulher oprimida?” (Rubin, 2017, p. 10).

4.  “Sob condições de dominação masculina, mulheres são, de fato, mais submissas que homens. Isso é uma generalização verdadeira e todos que vivem sob a dominação masculina estão justificados em acreditar nela. Por outro lado, se a dominação masculina é hegemônica, isso parece descrever não apenas como mulheres acabaram sendo, mas algo mais: como elas são” (Haslanger, 2011, p.182, minha tradução).

5.  Por exemplo, existe o feminismo anti-imperalista, o feminismo marxista, o feminismo negro, o feminismo interseccional, o feminismo liberal, o feminismo radical etc.

Referências

Beauvoir, Simone de (2009). O segundo sexo (S. Millet, Trad.) (2ª ed.). Nova Fronteira, p.10.

Bettcher, Talia Mae (2013). "Trans Women and the Meaning of ‘Woman’". In A. Soble, N. Power & R. Halwani (eds.)

Byrne, Alex (2019). What is gender identity? Arc Digital (jan 9)

Haslanger, S. (2000). Gender and Race: (What) Are They? (What) Do We Want Them to Be? Noûs, 34(1), 31–55. 

Haslanger, Sally (2011). “Ideology, Generics, and Common Ground”. In Charlotte Witt (ed.), Feminist Metaphysics. Springer Verlag. p. 182. 

Rubin, Gayle (2017). “O tráfico de mulheres: Notas sobre a ‘Economia Política’ do Sexo”. In: Política do sexo: Gayle Rubin (J. Pinheiro Dias, Trad.). Ubu Editora, p.10.