O Título Filósofa

Camila Ezídio

Pesquisadora de pós-doutorado Cnpq/PPGF-UFBA e professora da Universidade do Estado da Bahia

06/06/2023 • Coluna ANPOF

Da leitura de alguns textos, dois deles publicados na coluna da ANPOF, e de minha própria experiência pessoal, me surgiu a necessidade de escrever algumas linhas sobre um tema que, apesar das nuances, é bastante comum nos nossos debates atuais: a atribuição do título de filósofa a uma mulher e, aqui, especialmente àquelas que mais me tocam, as mulheres medievais.  

Como bem sabemos, o fazer filosófico se desenvolveu na história da filosofia como uma atividade publicamente masculina, seja porque foi dito que eram apenas os homens que tinham a capacidade intelectual para fazê-lo, seja porque os parâmetros exigidos para sua prática foram estritamente delimitados pela ótica de um grupo do sexo masculino. Por consequência, toda produção teórica que extrapolasse ou simplesmente não estivesse em conformidade com esse modelo do fazer filosófico, que se consolidou como único, não seria reconhecida como sendo Filosofia e aquelas que a fizessem não receberiam o título de filósofas.

Esse problema toma proporções ainda maiores quando chegamos à Idade Média. De modo geral, a própria Filosofia Medieval ainda é posta em xeque pela compreensão equivocada de que na chamada “Idade das Trevas” não houve uma produção intelectual que possa ser considerada Filosofia. Ela também continua a tentar ser desmembrada entre a fé e a razão, entre o que é Teologia e o que é Filosofia pelos enrijecidos padrões resultantes do modelo único do fazer filosófico. Entretanto, se essa relação é tida como problemática, é também dela que emerge grande parte da produção teórica do período, incluindo aquela feita por mulheres. 

Há que se considerar que a Filosofia como teoria e método não adentrou completamente os muros dos espaços de educação medieval femininos, sobretudo, os conventos. Por um lado, a Filosofia, ou ao menos uma parte dela, representava um conhecimento impróprio para aquelas mulheres que tinham as condições sociais de receberem qualquer espécie de instrução formal. Por outro lado, não podemos desconsiderar que as mulheres até há pouco tempo não se reconheciam nesse saber, porque nunca foram reconhecidas nele, afinal, dentre outras questões, elas eram desprovidas da capacidade intelectual exigida para tal ofício. Dessa forma, se a Filosofia não era um conhecimento para as mulheres medievais, ela tampouco poderia ser uma atividade reconhecidamente possível de ser praticada por elas. 

O efeito desse cenário pode ser sentido no próprio cânone filosófico e na sua imensa dificuldade em atribuir, ainda hoje, o título de filósofa para muitas das mulheres medievais. Como exemplo dessa classe poderíamos citar, Hildegarda de Bingen, Heloísa de Argenteuil, Herrard de Landsberg, Beatriz de Nazaré, Marguerite Porete, Catarina de Siena, dentre tantas outras.

É verdade que algumas dessas personagens femininas mencionadas acima integram o grupo particular das místicas, profetizas e/ou visionárias, o que para alguns pode representar um impasse, do ponto de vista metodológico e teórico, para o seu reconhecimento enquanto filósofa, mesmo isso não tendo sido um problema no caso de autores místicos como Dionísio Areopagita e Mestre Eckhart. 

No que diz respeito as teorias dessas mulheres medievais aqui mencionadas e de muitas outras, é notável que o seu pensamento, assim como o de autores homens do período, está imerso naquilo que é o próprio problema estrutural da Idade Média: a relação entre fé e razão. Os temas dessa produção feminina, tais como questões de caráter ético, como as virtudes e de caráter epistemológico, como o conhecimento de Deus são também comuns a autores medievais reconhecidos pelo cânone como Agostinho e Tomás de Aquino. Dessa forma, nos cabe questionar: o que falta a essas mulheres medievais, com expressiva produção intelectual dentro dos temas caros à Idade Média, para receberem o título de filósofas, assim como seus contemporâneos do sexo masculino? 

Via de regra é na própria Idade Média que encontramos uma mulher que reconhece uma outra com o título de filósofa. 

Heloísa de Argenteuil (séc. XII), em uma de suas cartas para Abelardo, atribui o título de filósofa a Aspásia de Mileto. Aspásia já havia aparecido em diversas obras escritas por homens tais como, o Menêxeno de Platão e o Da Invenção de Cícero. Entretanto, nestas ela recebe o título de mestra e professora, mas nunca de filósofa. E, por que Aspásia não recebe tal título se fica explícito nesses mesmos textos que ela utiliza da lógica e da retórica, partes essenciais da Filosofia, para transmitir seus ensinamentos a filósofos reconhecidos pelo cânone? Há quem provavelmente responda que falta a Aspásia um sistema filosófico ou um conjunto básico de textos. Todavia, por outro lado, não parece ter sido difícil ao cânone atribuir o título de filósofo a um dos ilustres alunos dessa mulher, no caso, Sócrates, o qual também não dispõe de um sistema e nem de textos para assim ser intitulado.

Entre as desventuras dessa história filosófica muito chamou a atenção desta que aqui escreve o papel que Heloísa desempenha ao atribuir o título de filósofa a uma outra mulher. Ao fazê-lo, ela reconhece a si própria, porque reconhece a Filosofia como um conhecimento para as mulheres e, claro, o próprio fazer filosófico como uma atividade possível de ser praticada pela natureza feminina. Em última instância, Heloísa reconhece, através da atribuição do título de filósofa a Aspásia, a própria capacidade intelectual das mulheres, a qual lhes havia sido histórico e socialmente renegada. 

É muito provável que eu não tenha trazido nenhuma grande conclusão com as minhas palavras, mas apenas um apanhado de informações que, apesar de óbvias, ainda ecoam em nosso meio me dirigindo para dois últimos questionamentos: afinal, qual é a real dificuldade do cânone e da própria comunidade filosófica em atribuir o título de filósofa a muitas das mulheres intelectuais da Idade Média? E, por fim, será que nós, mulheres pós-modernas e filósofas, seguiremos o exemplo da mulher medieval e filósofa, Heloísa, e atribuiremos em nossos textos e aulas, o título de filósofa a uma outra mulher?

 

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