Os Condenados da Terra e o processo de descolonização segundo Frantz Fanon
Ana Paula Martins de Souza
Doutoranda em Filosofia (PPGF/PUCPR)
21/02/2025 • Coluna ANPOF
No livro "Os Condenados da Terra", Frantz Fanon elabora uma análise sobre os efeitos do colonialismo e a necessidade de sua superação por meio do processo de descolonização. Fanon, um psiquiatra e filósofo martinicano, construiu sua obra a partir de sua vivência na luta anticolonial na Argélia e das suas observações dos impactos psicológicos e sociais do colonialismo sobre os povos colonizados.
Para o autor, o colonialismo é um sistema intrinsecamente violento e que impõe seu domínio e controle por meio da força física, psicológica e simbólica. Para ele, essa violência estrutural não apenas subjuga os corpos e os recursos dos povos colonizados, mas também atinge suas consciências, desumanizando-os e colocando-os numa posição de inferioridade. Nesse sentido, a violência do colonizador não se limita a uma agressão direta. Ela é, antes de tudo, uma violência ontológica, que define o ser do colonizado como algo menos humano. Conforme considera Gabriel Filho em seu artigo intitulado A atualidade de “Os Condenados da Terra” de Frantz Fanon, coloca que a primeira observação que Fanon traz em sua obra consiste na ideia de que a “violência que a colonização implica, e a correspondente violência absoluta que decorre da descolonização (...) acarreta uma profunda transformação do ser colonizado, ou seja, a criação de homens novos” (2017, p. 830).
O sistema colonial é construído e sustentado por meio da força brutal e da violência, que se manifestam não apenas nas ações repressivas, mas também na forma como o colonizador define e controla a existência dos povos colonizados. A violência colonial impõe uma estrutura hierárquica onde o colonizado é considerado inferior, um sub-humano. A colonização atua, portanto, como uma violência totalizante que se infiltra nas instituições, na economia e na cultura. Ela criou uma sociedade dividida em dois polos opostos: o mundo dos colonizadores, caracterizado pelo privilégio e pelo acúmulo de riqueza, e o mundo dos colonizados, marcado pela miséria e pela repressão, ou seja, “o mundo colonial é um mundo compartimentado” (FANON, 2022, p. 33)
Fanon, argumenta que essa estrutura de violência não pode ser superada por meios pacíficos, pois o próprio tecido social colonial é sustentado pelo uso constante e sistemático da força. “A violência do regime colonial e a contra-violência do colonizado se equilibram e se respondem a uma homogeneidade recíproca extraordinária” (FANON, 2022, p. 85).
A colonização atua, portanto, como uma violência totalizante que se infiltra nas instituições, na economia e na cultura e, para Fanon, essa estrutura de violência não pode ser superada por meios pacíficos, pois o próprio tecido social colonial é sustentado pelo uso constante e sistemático da força. No processo de descolonização, Fanon argumenta que surge uma "violência absoluta" como resposta à violência contínua e estrutural do colonialismo. A descolonização, para ele, não é uma simples troca de poder ou uma reforma gradual das instituições coloniais, mas uma ruptura radical que abala os alicerces da sociedade colonial. Esse processo de ruptura não é meramente político ou econômico; é um ato profundo de transformação social e psicológica.
A violência anticolonial, portanto, tem um papel purificador, pois permite ao colonizado recuperar sua humanidade e identidade, que foram destruídas pela opressão colonial. Ao se rebelar, o colonizado não está apenas lutando contra a opressão material, mas também contra a internalização da inferioridade imposta pelo colonizador. Este é o momento em que ocorre a "transformação do ser colonizado": a violência decolonial é vista como um meio de criar "homens novos", ou seja, indivíduos que se libertam das amarras do medo, da submissão e da alienação, “rumo a um novo humanismo… A compreensão entre os homens… Nossos irmãos de cor.... Creio em ti, Homem” (FANON, 2020, p. 21).
A partir disso, o nascimento desses "homens novos" ocorre no calor da luta pela independência. O ato de resistência armada e a mobilização popular têm um impacto transformador, pois alteram a própria percepção que o colonizado tem de si mesmo. Ele deixa de ser um objeto passivo e dominado para se tornar um sujeito ativo e autônomo. Esse processo é fundamental para a reconstrução da identidade coletiva dos povos anteriormente subjugados, uma vez que a violência atua como uma forma de catarse coletiva e individual, necessária para a libertação do trauma colonial.
É importante ressaltar que a expressão "criação de homens novos" reflete o ideal elaborado por Fanon, o qual acredita que o processo de descolonização não deve apenas destruir as estruturas opressivas do colonialismo, mas também possibilitar o surgimento de uma nova subjetividade. Esse novo ser humano, liberto das limitações impostas pelo sistema colonial, deve ser capaz de construir uma sociedade baseada em igualdade, justiça e respeito mútuo. Fanon não vê a violência como um fim em si mesma, mas como um meio para alcançar uma transformação revolucionária, que redefine as relações sociais e culturais de maneira profunda e duradoura.
Fanon, ao enfatizar a necessidade da violência no processo de descolonização, não está fazendo uma apologia à brutalidade descontrolada, mas sim destacando que, diante de um sistema que se baseia na violência, a libertação não pode ocorrer sem uma ruptura violenta. Para ele, o processo de descolonização é, antes de tudo, uma luta pela reconquista da humanidade e pela criação de um novo horizonte de possibilidades para os povos colonizados.
Dessa forma, a descolonização representa um renascimento coletivo, um momento em que o sistema de opressão é destruído e uma nova realidade é construída a partir das lutas e resistência dos colonizados. O conceito de "homens novos" é, portanto, símbolo de um futuro onde as identidades e subjetividades não são mais moldadas pela violência colonial, mas sim pelo esforço de criar uma sociedade verdadeiramente livre.
Em síntese, a violência que decorre da descolonização não é apenas uma reação à opressão, mas um instrumento de transformação radical, necessário para romper com o legado de submissão e para possibilitar o surgimento de uma nova consciência e identidade dos povos colonizados.
Referências
FANON, Frantz. Os condenados da terra. São Paulo: Zahar, 2022.
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Tradução de Sebastião Nascimento e colaboração de Raquel Camargo. São Paulo: Ubu, 2020.
FILHO, Gabriel Barbosa Gomes de Oliveira. A atualidade de “Os Condenados da Terra” de Frantz Fanon. Rev. Bras. Educ. Camp., Tocantinópolis, v. 2, n. 2, p. 830-832, 2017.DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2017v2n2p830.
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