Pandemia como um fenômeno moral: justiça e condições de escassez*

Evandro Barbosa

Professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas - UFPel

28/09/2022 • Coluna ANPOF

Série especial - Minicursos XIX Encontro Anpof

*Agradeço às minhas alunas, Thaís e Celina, e aos meus alunos, Fernando, Maurício, Sérgio e Guilherme, pelas discussões sobre o tema em nossa disciplina Ethics during Pandemic Times: Some Guidelines. Para mais material sobre o tema, confira www.pandemiclives.com.

 

Você já se perguntou quando foi o seu Pandemic Day? [1] Quer dizer, o dia em que você se deu conta de que a pandemia de Covid-19 finalmente havia chegado em sua vida e logo mudaria o curso da história humana. A primeira coisa que precisamos assumir ao falar de uma pandemia é que ela é um problema coletivo. Não obstante, por ser um fenômeno multifacetado, suas consequências afetam os indivíduos de maneiras distintas. No caso da pandemia de Covid-19, ela foi primordialmente tomada como um problema de saúde pública e econômica. Do ponto de vista filosófico, a maioria das discussões foram e ainda são direcionadas a questões de bioética – prioridade em leitos de UTI ou respiradores – ou de direitos e deveres individuais e coletivos – uso de máscara e o direito de ir e vir. Embora tais discussões sejam relevantes, a pandemia parece não ter captado a atenção filosófica de forma mais consistente sobre seus desdobramentos em outros aspectos da vida humana. Como resultado, ainda que alguns filósofos já vislumbrem o surgimento de um novo campo de pesquisa, a ética pandêmica [2], a maioria das discussões que estamos fazendo ainda são embrionárias.

Uma possível explicação para esse processo mais lento de discussão talvez resida no modo como definimos a pandemia. Quando a tratamos como um fato contingente da vida humana, teríamos pouco ou nada a dizer sobre ela do ponto de vista da moralidade. Nesse caso, os aspectos fundamentais da moralidade seriam secundários ou a discussão estaria restrita a outros campos científicos como as já mencionadas áreas da saúde e economia. No entanto, quando tomamos a pandemia como um fenômeno moral, assumimos que ela possui certas características que os teóricos morais precisam examinar. Podemos fazer isso de duas maneiras. Por um lado, a própria pandemia pode ser pensada do ponto de vista moral tal como são pensadas as considerações morais sobre uma guerra ser justa ou não – trata-se de analisar a guerra per si como um fenômeno moral. Observada dessa forma, a filosofia poderia se preocupar em discutir elementos como prevenção, preparação ou mitigação dos efeitos de uma futura pandemia [3]. Além disso, podemos pensar que a pandemia gera fenômenos dignos de consideração moral, ou seja, gera eventos ou situações que requerem nosso olhar filosófico. Este é o caso não apenas das discussões mencionadas em bioética, mas também de considerações sobre as próprias relações humanas em termos de justiça e condições de escassez. Esta talvez seja uma das questões morais mais relevantes inerentes à pandemia. 

Na fase mais dura, nosso cotidiano pandêmico incluiu uma miríade de cenas dantescas sobre falta de leitos da UTI, falta de oxigênio para tratar pacientes, curas mirabolantes defendidas por líderes religiosos, políticos negacionistas e assim por diante. Isso nos leva a certas perguntas sobre o que é justo em uma pandemia ou se, sob certas condições, poderíamos dizer que tudo é moralmente aceitável. Para responder tais questões, precisamos considerar em que medida as condições externas que cercam o agente moldam ou influenciam seu comportamento e sua capacidade de elaborar juízos morais.  Na tradição filosófica, David Hume [4] é um bom guia nessa discussão ao afirmar que a justiça precisa ser útil publicamente, ou seja, ela precisa ter um propósito enquanto uma virtude artificial. Para isso, ele afirma que as circunstâncias externas são cruciais para determinar uma concepção de justiça e elenca três possíveis cenários. 

Primeiro, imaginemos um contexto de abundância absoluta – i. e., a disposição de recursos é farta tal como o ar que respiramos. Nesse caso, mesmo que a convenção da justiça seja possível, ela não seria necessária, pois não haveria bens ou produtos para um juiz arbitrar sobre sua justa distribuição. Uma segunda possibilidade seria afirmar que existem condições de escassez moderada. Nesse caso, a justiça seria necessária e possível, uma vez que precisaríamos mediar a disputa sobre determinados recursos limitados. Por fim, a opção mais difícil aparece quando nos encontramos em uma situação de escassez absoluta. Nesse cenário, a falta de recursos seria tamanha que, mesmo que a justiça fosse necessária, ela não seria possível ou seria de difícil alcance. Afinal, não haveria sobre o que arbitrar, no fim das contas. 

Minha hipótese é que a pandemia constitui um cenário de escassez absoluta, ao menos na fase mais dura da pandemia e sobre determinados bens [5]. O exemplo sobre as filas para leitos de UTI, respiradores e mesmo vacinas são um indicativo disso. A pandemia gera esse tipo de situação externa com a qual precisamos lidar, especialmente os grupos mais vulneráveis, sendo seu efeito sobre esses grupos muito mais agressivo do que em outros socialmente mais favorecidos. Isso parece gerar um desequilíbrio no modo como a pandemia afeta diferentes indivíduos e parece insensato (para dizer o mínimo) exigir que grupos distintos, cujos impactos da pandemia são diferentes, tenham o mesmo tipo de resposta sobre o tema.

Parte dessa suspeita é que a pandemia não se enquadra no prospecto de cenários das teorias ideias de justiça, o que torna mais difícil a manutenção dos modelos tradicionais de justiça aplicados ao contexto pandêmico. Isso reforça a necessidade de tratarmos a pandemia como um fenômeno moral a ser explorado e discutido para termos elementos teóricos para consolidar modelos de justiça capazes de lidar com o problema. Esse é o grande cenário da discussão. Como disse inicialmente, essa discussão ainda é escassa, haja vista que, embora a pandemia não seja uma novidade na história humana, as considerações sobre ela como fenômeno moral são, talvez porque temos outros problemas mais urgentes para discutir, como fome, pobreza e desigualdade. Ainda assim, a pandemia não terminou e ainda estamos lidando com suas consequências. Ela é como a Espada de Dâmocles pairando sobre nós. Então, queiramos ou não, este é um alerta para que ela seja alvo de nossa consideração moral nos próximos anos e décadas. 


Referências

Araújo, M. 2021. The Nascent Field of Pandemic Ethics: Prevention, Mitigation, Responsibility, and Adaptation, SSRN, December. http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3984756  

Barbosa, E. 2022. The COVID-19 Pandemic as a Severe Scarcity Condition: Testing the Tenacity of Ideal Theories of Justice. G. Schweiger (ed.), The Global and Social Consequences of the COVID-19 Pandemic, Studies in Global Justice 22, 2022, p. 19-34. https://doi.org/10.1007/978-3-030-97982-9_2 

Davies, B.; Savulescu, J. 2022. Institutional Responsibility is Prior to Personal Responsibility in a Pandemic. Value Inquiry. https://doi.org/10.1007/s10790-021-09876-0 

Levy, N.; Savulescu, J. 2021. After the Pandemic: New Responsibilities. Public Health Ethics, Vol 14, 2, p. 120–133. https://doi.org/10.1093/phe/phab008

Hume, D. 2009. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Trad. Déborah Danowski. 2ª ed. São Paulo: Unesp.

Selgelid, M.J. 2009. Pandethics. Public Health 123, p. 255–259. 10.1016/j.puhe.2008.12.005


Notas

[1] Alguns relatos de pandemic day podem ser encontrados em https://pandemiclives.com/?page_id=1223

[2] Marcelo Araújo (2021) apresenta este cenário de forma bastante sistemática, alertando para a emergência de um novo campo de estudo, semelhante ao que já aconteceu com a neuroética ou com as discussões sobre mudança climática. Veja também Selgelid, 2009.

[3] Cf. Davies & Savulescu (2022); Levy & Savulescu (2021); Araújo (2021). 

[4] Cf. Tratado da Natureza Humana, 3.2.2, 1-19 e 3.2.2, 1-29.

[5] Desenvolvo essa discussão com mais detalhes em Barbosa, 2022.