Paradoxismo: um novo sistema realista brasileiro em face das tensões neorrealistas

Gabriel Cruz

Mestrando em Filosofia na UFRRJ

18/02/2025 • Coluna ANPOF

Tudo o que existe é paradoxal. Por isso mesmo, tudo é paradoxalmente consistente. Na verdade, é o paradoxo do paradoxo - o paradoxo “autorreferente” ou “reflexivo” - que se impõe como a causa da pluralidade consistente. Mais ainda, o “paradoxo” enquanto entidade reflexiva é a única arché possível de justificar uma pluralidade inesgotável do real. É precisamente esse conjunto de teses controversas que o artigo The World In Paradox, publicado em 20/12/2024, se propõe a defender. Seu principal objetivo é tirar proveito do retorno da metafísica a partir de uma invectiva criativa, isto é, a partir da proposta do “paradoxismo”. Isto posto, recuemos um pouco na cadeia de justificações e busquemos compreender, afinal, porque defendemos hoje esse conjunto de teses.

O berço do paradoxismo é o contexto que podemos chamar de “tensões neorrealistas". O termo “neorrealismo” funciona, aqui, como um nome provisório para referir-se à gama de novas vertentes realistas que surgiram desde o fim dos anos 90. A pergunta que guia essas vertentes é simples: “o que conta como real?” ou “qual é o verdadeiro princípio de realidade?”. Essas são questões “pré-socráticas” por excelência. Por seu teor supostamente “ingênuo”, a relevância de perguntas desse tipo foi minada durante algum tempo. Agora, no entanto, elas retornam com uma vingança: ao que parece, toda teoria que se vê como a-realista precisa justificar sua validade por meio de algum comprometimento com a “realidade”. A acusação, portanto, é de que a realidade está sendo ignorada. Essa ignorância voluntária impõe-se cada vez mais como contraproducente, haja vista as crises humanitárias e ecológicas em que estamos inseridos hoje. É neste contexto, aparentemente insustentável, que ocorre o que ficou conhecido como “virada realista”.

Embora um número não pequeno de filósofos gravite em torno dessa virada, pode-se defender coerentemente que dois grupos são os protagonistas: o “Realismo Especulativo”, fundado por Ray Brassier, Iain Hamilton Grant, Quentin Meillassoux e Graham Harman em 2007; e o “Novo Realismo”, fundado por Maurizio Ferraris e Markus Gabriel em 2011. Todos esses filósofos são guiados por essa “vingança do real”. Dentre eles, o mais inclusivo e pluralista é Markus Gabriel para quem tudo, absolutamente tudo, é real - menos o “mundo”.

Na verdade, a inexistência do mundo, ou seja, da “totalidade absoluta”, parece impor-se como condição de possibilidade para a pluralidade irrestrita do real. Essa pluralidade é estabelecida precisamente por não haver um contexto final que dite as regras do que, ao fim e ao cabo, “conta como real”. De fato, o “campo onicompreensivo” não pode existir porque não há condições de possibilidade para sua existência: se algo o abarcasse, então ele deixaria de ser o “mundo” (por definição). É pela questão da pluralidade adida aos problemas vinculados às condições de possibilidade do mundo que Gabriel decide abdicar da totalidade e utilizar essa decisão teórica como ponto pivotal para uma teoria pluralista. A partir desses esclarecimentos, fica latente que todos os neorrealistas se comprometem com uma “regra de realidade” que os vincula a alguma noção de “mundo”. Paradoxalmente (e apesar de si mesmo), isso parece ser verdadeiro até no caso de Markus Gabriel.

O compromisso gabrieliano com o “mundo” surge em dois momentos centrais: (I) quando afirma a inexistência do mundo e, portanto, parece comprometer-se com um mundo que realmente existe em algum sentido e (II) quando lança mão de conceitos que perpassam (supostamente) tudo o que existe, como a noção de “objeto” ou de “campo de sentido”. É aqui que surge a aporia que serve de ponto de partida para o paradoxismo: o mundo transparece como um problema para o realista e, ainda assim, parece que não é possível ser realista sem mundo. É nessa instância que toda a empreitada neorrealista se depara com o problema do paradoxo.

O “paradoxo” pode ser compreendido como aquilo que, quando efetivado, torna indeterminada toda gama de objetos sob seu escopo. Essa indeterminação funciona como um “bug” metafísico que Gabriel chama de “sobrecarga ontológica”. Os objetos plenamente paradoxais “travam” a realidade, inviabilizando não só qualquer projeto teórico, mas também a própria “efetivação” do real. É preciso, por isso, justificar metafisicamente a existência do paradoxo e procurar uma forma de tratar consistentemente a inconsistência. Habemus Paradoxismo.

A intuição básica do paradoxismo é a ideia de um paradoxo reflexivo, que volta a paradoxalidade contra si mesmo. Se o paradoxo desmobiliza uma situação qualquer, travando-a, então o paradoxo do paradoxo se impõe como uma desmobilização de si mesmo. Ele desemboca em plena consistência, haja vista que desparadoxaliza toda a realidade. Neste cenário, há e não há o mundo: ele está em paradoxo, porque é o próprio paradoxo. É essa dialética conceitual que nos leva a defender que o paradoxismo se apresenta como a forma mais consistente de se defender o pluralismo absoluto.

Leia aqui o artigo publicado na Revista Das Questões (UnB), v. 19, n. 1 (2024)