Pessoas não são números!

Gabriel S. Suzart

Mestrando em Filosofia pela UFBA

27/02/2024 • Coluna ANPOF

Encontra-se popularmente, e infelizmente, parcialmente no âmbito acadêmico, bem como em outros contextos, um discurso meritocrático que sugere que todos têm as mesmas oportunidades de crescimento, como se estivessem no mesmo patamar educacional, existencial e familiar, entre outras dimensões. Há uma discussão do fato do ser humano ter a capacidade racional, o que o permite o desenvolvimento intelectual entre outras faculdades humanas, como a única condição que envolvesse o ser humano na realidade da sua existência no mundo.

Para piorar, muitos coaches e outros pensadores (ao menos ditos) promovem a ideia de que todos são capazes de alcançar seus objetivos, muitas vezes sugerindo que as pessoas devem sacrificar atividades primordiais para seu bem-estar pessoal, como convívio social e familiar, vida religiosa e lazer, em prol de metas financeiras. No entanto, essa abordagem frequentemente reduz as pessoas a números, negligenciando sua individualidade e pessoalidade e considerando-as apenas como unidades de potencial em um processo muitas vezes institucional e estatal, considerações que são disseminadas à sociedade. Isso desconsidera sua história, presença e esferas individuais que fazem parte da complexidade da experiência humana.

Creio que Emmanuel Mounier aponta bem o que é pessoa: um ser único, com uma dignidade intrínseca e valor inestimável e irrevogável. Ainda mais, ela não pode jamais ser considerada como um objeto, um número, um indivíduo qualquer, até mesmo um meio para algum objetivo/fim. Ela não pode ser descartável ou indivíduo de manobra de pensamento, seja qualquer que seja. A pessoa é vista como um ser que possui liberdade, responsabilidade e capacidade de se relacionar com os outros e com o mundo ao seu redor. Como também, a pessoa é considerada por ele, e por mim, em várias dimensões, não apenas a física/material, mas espiritual, emocional, social. Em concordância com Mounier, a pessoa é influenciada por suas circunstâncias de vida e pelas dificuldades enfrentadas, as quais moldam suas escolhas e valores. No entanto, apesar das adversidades, a pessoa mantém sua dignidade intrínseca e sua capacidade de agir livremente, vendo nas dificuldades oportunidades de crescimento e autoconhecimento.

Onde quero chegar? Quero expor a minha crítica sobre a crença equivocada de que todos os indivíduos, independentemente de suas circunstâncias e contextos pessoais, compartilham das mesmas oportunidades para prosperar e progredir na vida. Por exemplo, a ideia a que se cria de porque todas as pessoas estão no mesmo ano escolar, por exemplo, têm as mesmas chances e facilidades de progredirem na vida. Nesse sentido, elas são consideradas como números, indivíduos, unidades pensadas apenas num aspecto, seres desconsiderados de sua pessoalidade que incluem a sua história, suas realidades familiares, sociais, religiosas, angústias, transtornos, sonhos, traumas, entre tantas outras particulares a cada. Assim, o ser-no-mundo, como diria Heidegger, é algo universal, mas não é algo uniformizado para toda a pessoa humana, ou seja, cada um vive a vida na sua particularidade.

Ao observar, por exemplo, uma sala de aula com quarenta alunos, não se pode considerar que todas vêm de famílias iguais, bem estruturadas financeira, psicológica, emocional, socialmente, entre outros fatores. Não se pode nem sequer considerar que tais alunos realmente foram cuidados em suas necessidades básicas, ou formação ética-moral. E ao ter esta consciência não se pode pensar que uma educação que considere aquela comunidade de quarenta alunos de forma uniformizada, possa ter os mesmos resultados no presente e muito menos no futuro, nem sequer deixar de refletir que eles podem ingressar no mundo material de extrema pobreza, de violência, entre tantos outros estigmas sociais.

Considerar a experiência de estar numa sala de aula de aprendizagem como uma oportunidade de estudar não é ilusório até certo ponto, mas considerar que a existência de cada um desses está apenas limitada a esse aspecto chega a uma ignorância abrupta e desumana, e volta ao fato de serem considerados números: todos os indivíduos estão nesse ponto C (fase escolar) e irão chegar todos ao ponto Z (ex.: alguma realização profissional), se estudarem, “porque apenas são estudantes” (uma quantidade de estudantes). Dessa forma, pensa-se e dissemina-se que a vida é uma matemática básica e fácil de causa e efeito, e que as circunstâncias pessoais, como fome (que por sinal atrapalham o aspecto cognitivo para a apreensão de conteúdo), como situações familiares, violência na família ou em sua comunidade local, a falta de formação em diversos sentidos, não atrapalhasse essa realidade.

Portanto, as condições, circunstâncias e realidades de vida não se enquadram na matemática básica; elas são constitutivas da pessoa humana, e não do indivíduo, da unidade da humanidade, não é uma abstração da humanidade. Pessoas não são números! Não podem ser reduzidas a meros números! Elas têm vidas que demandam cuidado, pois compartilhamos todos da mesma humanidade. Todas as pessoas têm suas próprias histórias, têm dimensões existenciais, têm sonhos, têm a possibilidade de escolher, condenados à liberdade, parafraseando Sartre, e não à limitação e aprisionamento da sua pessoalidade a um número e por conceitos simplistas que muitas vezes são promovidos em discursos sobre igualdade de oportunidades e meritocracia.

Diante dessas reflexões, é fundamental reconhecer que a busca pela igualdade de oportunidades e o combate à visão meritocrática não são tarefas simples. Requerem não apenas uma mudança de mentalidade, mas também políticas públicas e ações concretas que enfrentem as desigualdades estruturais presentes em nossa sociedade. Isso envolve investimentos em educação de qualidade, políticas de inclusão social, combate à discriminação e promoção da diversidade, investimento nas outras áreas primordiais da sociedade como saúde, segurança, empregos, entre outras medidas. A construção de uma sociedade mais justa e igualitária é um processo contínuo que demanda o engajamento de todos os setores da sociedade.

Por outro lado, é importante destacar que cada indivíduo também tem um papel a desempenhar nesse processo. Além de exigir mudanças estruturais, também é preciso cultivar valores de empatia, solidariedade e respeito mútuo em nossas relações cotidianas. Isso significa reconhecer a dignidade e o valor intrínseco de cada pessoa, independentemente de sua posição social, e agir de maneira a promover a inclusão e o bem-estar de todos. Somente assim poderemos construir um mundo onde as pessoas sejam verdadeiramente vistas e tratadas como seres humanos, e não como números ou estatísticas em prol de algo.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.