Projeto de Vida: cloroquina para os males do Ensino Médio

Francisco José Dias de Moraes

Prof. Filosofia (UFRRJ)

Erick de Oliveira Santos Costa

Professor de Filosofia (SEEDUC/RJ)

Rodrigo Pinto de Brito

Prof. Filosofia (UFRRJ)

10/02/2022 • Coluna ANPOF

Francisco José Dias de Moraes

(Professor associado do Departamento de filosofia da UFRRJ, coordenador do PPGFIL/UFRRJ e coordenador do núcleo de Filosofia e Belas artes do Programa Residência Pedagógica da UFRRJ)

Rodrigo Pinto de Brito

(Professor adjunto do Departamento de filosofia da UFRRJ e coordenador do curso de Licenciatura em filosofia da UFRRJ)

Erick de Oliveira Santos Costa

(Professor de filosofia da SEEDUC/RJ, mestre em filosofia pelo PPGFIL e preceptor do núcleo de Filosofia e Belas artes no Colégio Estadual Raja Gabaglia)


Uma das novidades do chamado Novo Ensino Médio foi a criação da disciplina “Projeto de vida”.  Em diversos estados, particularmente no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, a reserva de carga horária para essa disciplina tem acarretado uma diminuição drástica da carga horária destinada ao ensino de ciências humanas. Na verdade, a diminuição da carga horária alcança todas as disciplinas, sendo justificada em função da necessidade de abrir espaço aos itinerários formativos. No Rio Grande do Sul, por exemplo, Filosofia e Sociologia ficarão reduzidas a um único tempo em todo o Ensino Médio; no Rio de Janeiro, a dois tempos. Essa reestruturação do Ensino Médio significa, concretamente, a desestruturação dessas áreas de conhecimento, o que atende às aspirações de movimentos conservadores como o “Escola sem partido”, que sempre acusaram os professores dessas disciplinas de promoverem doutrinamento em sala de aula. A única disciplina que teve carga horária aumentada foi exatamente a disciplina Projeto de vida. No Rio de Janeiro, serão dois tempos em cada ano do Ensino Médio, totalizando seis tempos.  O sentido da reestruturação parece claro: em vez de tomarem conhecimento de conteúdos teóricos “distanciados da vida”, “chatos” e “elitistas”, que não podem ser facilmente compreendidos e utilizados, por exigirem certo distanciamento do que ordinariamente possui valor reconhecido, os estudantes agora devem se preocupar prioritariamente com as suas vidas, com o seu futuro, com os seus interesses particulares imediatos. Assim, com menos horas dedicadas às disciplinas teóricas, poderão “caçar” um meio de sobrevivência, uma ocupação que traga retorno financeiro, aliviando dessa maneira a aflição de suas famílias. O sucesso ou o fracasso na vida passaria a depender apenas dos próprios estudantes e de mais ninguém! 

Para avaliar de modo mais aprofundado essas mudanças, que estão sendo implementadas, é preciso compreender que elas refletem uma tentativa de ressignificação do Ensino Médio como um todo, que passa a estar focado na “preparação para a vida”, assumindo um claro viés pragmático-utilitário, orientado para a gestão do tempo e para o melhor aproveitamento das oportunidades disponíveis. A mudança, na prática, traz consigo a privatização de todo o Ensino Médio. Não no sentido de que todas as escolas passarão a cobrar mensalidade, mas antes no sentido de que os estudantes serão vistos de maneira privada, acentuando-se a busca do sucesso particular em detrimento de dimensões formativas mais universalizantes. O modelo inspirador desse novo formato é claramente o coach, espécie de tutoria focada em melhorar o rendimento de profissionais em suas respectivas atividades. Mas como os estudantes do Ensino Médio não possuem ainda uma profissão definida, a não ser a “profissão” de estudante, o coach ou tutor assumiria o papel de “coach da vida”. Os professores, agora, já não se preocuparão, primordialmente, em ensinar as suas disciplinas, para as quais receberam formação específica; eles terão de se preocupar em instrumentalizar esse saber para, enquanto mediadores ou tutores, promoverem as “habilidades e competências” de seus alunos, a fim de que eles persigam seus objetivos particulares e tenham “sucesso na vida”. Tudo para o bem, evidentemente. E quem poderia se opor a quem tenciona o bem dos estudantes? Afinal, que mal pode fazer a cloroquina? Todos devem concordar que a escola não há de formar alunos “fracassados”, ou seja, alunos que não sabem exatamente o que querem da vida. Como se já estivesse decidido que não saber o que se quer da vida fosse uma fraqueza e não uma força. Como se todos soubessem que a aflição de encontrar, a qualquer custo, uma posição, um “lugar ao sol”, visibilidade, fosse mais proveitoso do que sustentar um estado de suspensão em relação ao futuro profissional. Vale a pena examinar, criticamente, os pressupostos fundamentais e o sentido dessa disciplina, que tende a tomar o lugar da Filosofia no Novo Ensino Médio 

Comecemos pelo que nos parece mais fundamental, por aquilo que se revela como o sentido mais evidente desse novo componente curricular: a ideia, tida como indiscutível, de que apenas a preocupação aflitiva com a própria vida, com o próprio futuro, poderia mobilizar verdadeiramente o interesse dos estudantes, o seu engajamento ativo no processo ensino-aprendizagem. A ideia nos parece falsa e mesmo perversa. É falsa, em primeiro lugar, porque há inúmeras formas de engajamento livre que dispensam precisamente a preocupação aflitiva consigo mesmo e que supõem, inclusive, como condição de possibilidade, o desinteresse e certo alheamento de si. É o caso, notadamente, da experiência da beleza. Onde quer que a atenção esteja direcionada para a coisa mesma e não para nós, enquanto particulares, mais livre consegue ser o nosso engajamento nesta atividade. Todo gosto de conhecer por conhecer está intrinsecamente ligado a essa experiência essencialmente lúdica da beleza e exige certa capacidade de alheamento de si, que nada tem de alienante, pois é assim que o próprio mundo pode ser experimentado objetivamente. Por outro lado, a ênfase na preocupação aflitiva com a própria vida, com o próprio futuro, é uma ideia perversa, pois releva o medo em relação ao fracasso, o medo de não obter sucesso na vida, como fonte autêntica do interesse por uma atividade, por uma profissão. Tudo passa a depender de uma única preocupação com segurança, com sobrevivência, com status, patrocinada por tutores paternalmente interessados no sucesso dos seus alunos.  E aqui surge o segundo aspecto que gostaríamos de enfatizar: a atuação dos professores. O que farão propriamente os professores em sala de aula? Qual será a sua função primordial? Serão ainda professores ou serão meros “mediadores”, isto é, motivadores, tutores, que estarão preocupados, antes de tudo, em guiar os estudantes para o sucesso, isto é, para a sua felicidade privada? É assim que a relação viva com o conteúdo a ser trabalhado em sala de aula, por exemplo: filosofia, história, sociologia, deixa de ser um requisito necessário. Basta possuir noções gerais, basta compilar manuais ou mesmo acessar vídeos de celebridades de internet, curiosidades que prendam momentaneamente a atenção dos estudantes, para ser capaz de produzir conteúdo “mais acessível” e “motivador”. Se pensarmos que a disciplina Projeto de vida não possui aderência a nenhuma área de conhecimento específica, podendo ser ministrada por professores “com espírito jovem”, escolhidos a dedo pelas direções das escolas, teremos como resultado aulas-culto, a exemplo dos shows da fé nos templos da prosperidade espalhados pelo país. Ignora-se, deliberadamente, que qualquer possibilidade de reconhecimento de um professor enquanto professor passa por sua aderência a uma área específica de conhecimento, pela qual ele deve responder ativamente. Não se resolve o problema da formação precária dos professores, os quais são amiúde aviltados pelos baixos salários e pelas péssimas condições de trabalho, com a facilidade conferida a eles de renunciarem ao estudo e procurarem sustentação na performance motivacional, apelando aos chamados temas atuais. Seria o mesmo que pretender valorizar o trabalho dos policiais oferecendo-lhes licença para matar. A crítica justa a uma educação bancária não pode servir de justificativa para abandonar professores e estudantes ao que há de mais raso em matéria de formação. Certamente, um conteúdo distanciado da vida imediata precisa ser traduzido para que chegue a fazer pleno sentido. Não é algo simples tornar acessíveis e compreensíveis conceitos filosóficos. Mas semelhante tradução não implica em vulgarização e nem tampouco em descaracterização. 

É preciso denunciar e combater a disciplina Projeto de vida, representativa da direção privatizante e empobrecedora do Novo Ensino Médio, assim como é preciso denunciar e combater a prescrição de cloroquina para a Covid 19. Para tanto, não basta certamente a defesa do modo tradicional de ensino e aprendizagem, como se tudo estivesse na mais perfeita ordem. Não está! Por outro lado, é falso afirmar que disciplinas como Filosofia e Sociologia não despertem o interesse dos estudantes, por serem distantes de suas vidas concretas. Em passado recente, foi justamente o movimento de ocupação das escolas pelos estudantes secundaristas que garantiu a manutenção e mesmo a ampliação da carga horária de Filosofia no Ensino Médio. Na verdade, o Novo Ensino Médio pretende suprimir a possibilidade de um modo de vida característico, que aparece como potencialmente perturbador da ordem vigente: a juventude. Só há juventude quando, em certo momento da vida, que pode durar um tempo maior ou menor, não se sabe exatamente o que fazer com a própria vida. A juventude é um dar-se tempo, um querer não pensar no futuro, um poder adiar planos e projetos mais sérios. É a desconfiança poderosa, desafiadora, de que falta seriedade aos que só querem saber das coisas sérias. A filosofia, como exercício e área do saber, acolhe e potencializa essa indefinição, contribuindo para que ela chegue a bom termo. Por isso, de um ponto de vista estritamente utilitário, do ponto de vista da seriedade da vida e do trabalho, a filosofia parece inútil e contraproducente, mas do ponto de vista formativo ela chega a ser imprescindível. Se a vida ela mesma não é útil, a filosofia pode ser extremamente útil, na medida em que nos ajuda a descobrir em nós mesmos a própria sustentação, a própria seriedade.