Radar Filosófico - Gilda de Mello e Souza e a filosofia autoral no Brasil

Silvana Souza Ramos

Professora (USP)

08/08/2023 • Coluna ANPOF

Gilda de Mello e Souza foi aluna da missão francesa: estudou com Maugüé, Lévi-Strauss, e Roger Bastide. É importante dizer, contudo, que essa missão inaugural não significou a determinação da prática da historiografia filosófica segundo os moldes do método estrutural de leitura de textos canônicos; tampouco a especialização da filosofia e seu consequente insulamento, de modo que ela acabasse por perder a capacidade de dialogar com outras áreas das Humanidades. Para Gilda, ao contrário, fazer filosofia não era tornar-se especialista em determinado filósofo clássico; tratava-se, antes, de se apropriar da honestidade intelectual e da ousadia analítica dos franceses (segundo ela, esses professores não faziam filosofia de medalhão, como se tirassem as ideias da cartola, pois apresentavam em aula a bibliografia utilizada, ensinavam a lidar criticamente com os textos, sem precisar apelar para manuais; e essa postura, sem dúvida, Gilda absorveu em seu trabalho).

Ela não aderiu, porém, à ideia de que a filosofia seja sempre sistemática; ou de que uma história da filosofia cientificamente fundada devesse tomar como objeto apenas os clássicos sem se perguntar por que se tornaram clássicos (aliás, este pode ser perfeitamente um tema filosófico); Gilda tampouco acreditava que a filosofia não pudesse tomar como mote de seu exercício um objeto específico (ela recusava, portanto, a ideia de que a filosofia não pode ter objeto, ou seja, de que o pensamento abstrato não pode de modo algum tocar no real). É preciso lembrar que a tradição ensaística (de Michel de Montaigne a Walter Benjamin) tem essa característica: para eles, pensar é pensar alguma coisa; é confrontar-se com o não-idêntico, segundo a formulação de Adorno, quer dizer, enfrentar, sem camuflar, a resistência/opacidade do objeto, o qual extrapola o escopo do conceito. Ou, segundo os termos fenomenológicos (nos moldes de Merleau-Ponty e de sua maneira de compreender a epocké e a redução fenomenológica): pensar é dar a ver o que é invisível; não é criar alguma coisa do nada; a filosofia não é autoral nesse sentido, portanto; fazer filosofia original é, ao contrário, manter nossa ligação com o mundo ao mesmo tempo em que descrevemos a experiência que temos dele; não é fazer filosofia separada dessa experiência e das tradições em que estamos mergulhados. 

Mas voltemos a Gilda. Nossa filósofa escolheu para si a estética como campo de pesquisa. Não para fazer teoria estética, mas para descrever certas obras (segundo a ideia de estética pobre, a qual visa primordialmente não a grande arte, a obra prima ou consagrada, mas sim a arte que se expressa no cotidiano – a moda, por exemplo; a que é possibilitada pelo avanço técnico – a fotografia e o cinema, por exemplo –, e é preciso lembrar que seu diálogo com Paulo Emílio Salles Gomes foi de uma riqueza incomparável; ou a que envolve o gesto e a consequente conquista do espaço pela subjetividade – como a dança moderna de Fred Astaire. Ela aprendeu a escrever confrontando-se com esses objetos, esforçando-se para desentranhar-lhes o sentido.

Essa originalidade da reflexão de Gilda não pode ser compreendida apenas por influência da missão francesa, embora Roger Bastide – o mais brasileiro dos franceses desse grupo – tenha tido um papel fundamental na trajetória dela. Basta ler a aula terminal “A estética rica e a estética pobre dos professores franceses” para que se tenha noção dessa importância. Porém, essa referência não esgota todos os aspectos da trajetória e das fontes de Gilda. É preciso incluir aí o papel exercido por sua sensibilidade feminina e de criança criada na fazenda (Gilda cresceu no interior de São Paulo, em Araraquara, e reteve dessa experiência a memória da temporalidade rural, mesmo tempos depois de vir a morar em São Paulo, na casa de Mário de Andrade). 

Aliás, o papel de Mário de Andrade na trajetória de Gilda é imenso: primo de segundo grau, ele foi alguém que vislumbrou o talento de Gilda, que a ajudou emprestando livros, fichas de leitura, aconselhando-a, corrigindo-lhe os textos iniciais. Depois de saber de seu desejo de ser escritora, Mário ponderou que a jovem Gilda deveria dar continuidade aos estudos não nas Letras, mas sim na Filosofia ou nas Ciências Sociais. Segundo ele, o melhor não era se especializar em literatura. Antes, era preciso manter contato com todas as artes, com o baile das artes (algo só poderia sair da boca de um artista total, como era Mário). Mais tarde, o primo apoiou os projetos dos moços e moças da geração Clima: escreveu no primeiro número da famosa revista, a convite desses jovens intelectuais que desejavam pensar o Brasil por meio de sua produção estética. Estes que desejavam estudar os criadores, e não os teóricos, cuja originalidade reside exatamente no fato de que foram capazes de criar a moderna crítica de arte no Brasil, e cujo traço fundamental era o estilo ensaístico.

Artigo publicado na Revista Discurso (USP), v. 53, n.1, neste link.


Silvana de Souza Ramos possui graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado pela Universidade de São Paulo. Fez doutorado-sanduiche na Université Paris I - Panthéon/Sorbonne (2008-2009), sob supervisão de Renaud barbaras. Fez estágio como Visiting Professor na Università Ca'Foscari (2017), onde lecionou sobre o tema do totalitarismo. Desde 2014, é docente do Departamento de Filosofia da USP; desde 2018, Livre Docente; desde 2015, docente do PPGFil/USP; desde 2023, docente do PPG Multidisciplinar em culturas e identidades brasileiras do IEB/USP. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Ética e Filosofia Política, Filosofia Francesa Contemporânea e Estética. Estuda intersecções entre filosofia, cinema e gênero. Escreveu o curta-metragem Diana, dirigido por Clêmie Blaud. Dirige o Grupo de Estudos de Política e Subjetividades (DF/USP), do qual participam seus orientandos de graduação e de pós-graduação. É editora dos Cadernos Espinosanos (USP) e membro do corpo editorial de diversas revistas na área. É também membro dos seguintes Grupos de Trabalho da Anpof: GT Filosofia Francesa Contemporânea e GT Filosofia e Gênero, e uma das administradoras da Rede Brasileira de Mulheres Filósofas. Participa ativamente do International Merleau-Ponty Circle. Faz parte do Conselho Editorial da Enciclopédia da Filosofia Brasileira, coordenada por Ivan Domingues. É autora de A Prosa de Dora: uma leitura da articulação entre natureza e cultura na filosofia de Merleau-Ponty (Edusp, 2013) e Corpo e Mente (WF Martins Fontes, 2010). Atualmente estuda a obra de Gilda de Mello e Souza, filósofa e crítica de arte brasileira, e prepara um filme sobre a obra das filósofas no Brasil.

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