Radar Filosófico - Um ponto de vista não-individualista sobre a reflexão

Prof. Dr. Waldomiro J. Silva Filho

UFBA, CNPq

05/07/2023 • Coluna ANPOF

1. O artigo “Um ensaio sobre o ponto de vista epistêmico não individualista sobre a reflexão” pretende ser minha contribuição pessoal ao intenso debate sobre o sentido epistêmico da “reflexão”. A minha proposta pode ser descrita como epistemicamente não-individualista porque eu defendo que a reflexão é uma operação intelectual consciente, intencional e cooperativa através da qual uma pessoa examina criticamente o conteúdo de crenças em uma disputa intelectual. O contexto desse exame crítico são as situações dialógicas ou conversacionais: são contextos que envolvem tanto as próprias crenças da pessoa quanto as crenças de seus interlocutores. Eu sugiro que a reflexão produz o bem epistêmico de evitar vícios epistêmicos e promover a moderação epistémica.

2. O problema pode ser apresentado assim: a reflexão, entendida como autoexame crítico das próprias crenças, tem valor epistêmico? Ou ainda: existe algum bem epistêmico que só pode ser alcançado como o resultado da reflexão? Em que sentido um estado epistêmico alcançado através da reflexão seria mais valioso do que um estado epistêmico alcançado sem a reflexão? Na filosofia analítica, alguns epistemólogos concebem que a reflexão é uma condição necessária para a atribuição de estados epistêmicos valiosos, como conhecimento e entendimento. Outros epistemólogos rejeitam isso e sustentam que os filósofos tendem a exagerar na importância da reflexão para fenômenos epistêmicos.

Uma das razões pelas quais o tema da reflexão se tornou relevante em epistemologia é a importância do problema da natureza e possibilidade da justificação epistêmica, o que envolve a discussão sobre os estados e condições que podem ser necessários para que um sujeito tenha crenças baseadas em fundamentos adequados. Para uma tradição, o conhecimento é definido como crença verdadeira justificada. Para alguns epistemólogos, a justificação está associada ao acesso reflexivo que a pessoa tem ao conteúdo das suas crenças e às razões que essa pessoa pode reunir conscientemente para as sustentar contra ataques céticos. Por outro lado, outros epistemólogos consideram que a justificação epistêmica está relacionada com os processos causais (externos à consciência reflexiva) que produzem crenças verdadeiras na mente do sujeito. Dessa perspectiva, a cadeia causal não precisa necessariamente estar acessível reflexivamente à pessoa.

3. No debate epistemológico contemporâneo, a reflexão é entendida como uma atividade metacognitiva. Nesse sentido, refletir é uma performance individual autoconsciente e autorreferencial caracterizado como o ato de acessar e examinar as próprias crenças, pensamentos e outros estados epistêmicos. Mas os epistemólogos não concordam com o valor epistêmico dessa performance e com o tipo de resultado que ela produz. O cerne dessa discordância está nas disputas entre internalistas e externalistas sobre a noção de justificação epistêmica. Para uns, a justificação é uma condição necessária para o conhecimento e obtida pela reflexão; para eles, uma crença só pode se tornar conhecimento se for justificada, e só é justificada se for sustentada com base na reflexão. Para outros, a justificação epistêmica diz respeito ao processo natural-causal, cuja cadeia não precisa necessariamente ser reflexivamente acessível ao agente.

4. Meu argumento central não trata desse debate internalismo-externalismo. Minha preocupação é com o fato de que os internalistas defendem e os externalistas atacam o que chamo de concepção individualista da reflexão (CIR). (CIR) é a posição segundo a qual a reflexão é uma operação da mente por meio da qual um agente epistêmico individual conscientemente acessa, explora, avalia, endossa e calibra o conteúdo e a confiabilidade de suas próprias crenças.

Quando os epistemólogos falam sobre o valor da reflexão, quase sempre estão se referindo ao (CIR). Este artigo tem o objetivo de motivar uma maneira alternativa de afirmar que a reflexão tem valor epistêmico. Considero a reflexão como o pensamento sobre o pensamento, mas não exclusivamente sobre o meu próprio pensamento. Proponho uma concepção não-individualista da reflexão. Minha proposta é não-individualista porque (a) não considera apenas o desempenho metacognitivo individual e (b) refere-se a uma situação em que duas ou mais pessoas estão em confronto dialógico sobre o mesmo assunto ou proposição alvo, (c) elas disputam no espaço conversacional mediado pela linguagem e têm o direito de esperar que o interlocutor esteja engajado na tentativa de atingir objetivos epistêmicos (verdade, evitar erros e compreensão etc.).

5. Os dois pontos centrais de meu argumento são: primeiro, a perspectiva não-individualista não pretende abordar todos os problemas epistemológicos ou discutir diretamente o conceito de conhecimento. Este é um pequeno domínio da epistemologia social que aborda as situações em que as pessoas precisam disputar razões epistêmicas no espaço de conversação (motivadas pelo desacordo, curiosidade e dúvida). Segundo, embora não haja consenso sobre se a reflexão é uma condição do conhecimento, na conversação a reflexão poderia produzir um bem epistêmico, já que o agente terá um desempenho cauteloso, caridoso e moderado.

O artigo foi publicado na Revista Kriterion (UFMG) e pode ser acessado aqui

Waldomiro J. Silva Filho, natural de Camacã, Bahia, é filósofo, Professor Titular do Departamento de Filosofia da UFBA e torcedor do Fluminense. Foi pesquisador visitante na Harvard University (2009-2010), no MIT (2015-2016) e na Universität zu Köln (2017-2018, 2019). Atualmente é Pesquisador do CNPq e pesquisador convidado do Cologne Center for Contemporary Epistemology and the Kantian Tradition (Alemanha). Publicou artigos em Filosofia da Linguagem, Pragmatismo, Epistemologia e Ceticismo e, entre seus livros estão As Consequências do Ceticismo (com Plínio Smith, 2012), Sem Ideias Claras e Distintas (2013), Thinking about Oneself (com Luca Tateo, 2019), Tolerância Intolerante, de Mal a Pior (com Lilia Schwarcz e Ailton Krenak, 2020), Porque a Filosofia Interessa à Democracia (2020, segundo colocado no Prêmio da Associação Brasileira de Editoras Universitárias), A Calamidade (2022) e Os Dias (romance, 2023).

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