Ressonâncias do texto "o machismo nosso de cada dia não rima com filosofia"

GT Filosofia e Gênero da Anpof

30/11/2023 • Coluna ANPOF

O texto preciso e corajoso de Cinara Nahra faz uma reflexão necessária sobre o ambiente predominantemente masculino da área acadêmica da filosofia no Brasil. Além de mostrar os números da dissimetria de gênero[1], a autora também analisa as práticas cotidianas que ajudam a aprofundar a desigualdade numérica entre pesquisadores e pesquisadoras de filosofia.

Para endossar esses argumentos e apoiar as ponderações apresentadas por Cinara, nós do GT Filosofia e Gênero da Anpof, também trazemos à público alguns dados e questionamentos.

De modo geral, é possível afirmar que em quase todas as áreas do conhecimento (com exclusão daquelas ligadas ao cuidado), o número de mulheres no corpo docente do ensino superior é inferior ao de homens[2]. O que atesta o artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo[3], em 12 de março de 2021, intitulado “Na pós-graduação, mulheres são maioria entre estudantes mas minoria entre docentes”. O texto apresenta um outro dado, o chamado “viés implícito” que age no acirramento das desigualdades de gênero na ciência. Esse “viés” funciona mais ou menos assim, ele forja percepções (conscientes ou inconscientes) que determinam a incapacidade de algum grupo, gênero, etnia, etc, que são tomadas como verdadeiras pela repetição constante desses estereótipos (os mesmos que associam o trabalho da mulher natural e historicamente ao de cuidado, por exemplo). São eles que às vezes, sem que nos apercebemos, determinam que apenas os homens podem ocupar lugares privilegiados dentro da academia (dado que são eles que exercem geralmente os lugares decisórios nos cargos de gestão).

Conforme afirma as coordenadoras do Grupo de Trabalho “Mulheres na ciência” da Universidade Federal Fluminense:

O viés de julgamento implícito (inconsciente ou não percebido) relacionado à esfera acadêmica é em geral associado a estereótipos de baixo rendimento construídos socialmente em uma determinada cultura e exerce fortes influências nas avaliações e julgamentos de indivíduos ou grupos, na ausência de qualquer percepção consciente. Os estereótipos transmitidos repetida e imperceptivelmente através de vários canais de informação induzem crenças implícitas que serão usadas para organizar e categorizar socialmente o mundo. O viés implícito é mais prevalente do que o preconceito explícito. Isso significa que mesmo as pessoas que conscientemente acreditam e defendem princípios de justiça e não discriminação podem ter vieses implícitos que afetam imperceptivelmente seu julgamento. (Oliveira; Calaza, 2018, p. 01).

A análise de Oliveira e Calaza explica, mas obviamente não justifica a enorme dissimetria de gênero na ciência. Mais adiante, elas afirmam: “Evidências indicam que a presença de estereótipos implícitos de gênero, associando características de maior brilhantismo e inteligência ao gênero masculino é uma construção social que se inicia cedo, já nas crianças” (Bian et al apud Oliveira e Calaza, 2018, p. 01). Nesse sentido, a ideia de brilhantismo, de uma espécie de genialidade naturalmente atribuída mais frequentemente aos homens que às mulheres desde cedo e que se reproduz cotidianamente, faz com que não seja imediato nosso estranhamento quando os vemos em maioria esmagadora assumindo cargos e posições decisórias e de controle dentro e fora da academia. Não é preciso averiguar com números essa afirmação, pois qualquer evento científico em sua mesa de abertura atesta tal fato. São eles reiteradamente os nossos reitores, pró-reitores, coordenadores, presidentes de bancas, professores eméritos...

O gráfico abaixo demonstra a trajetória discrepante de homens e mulheres na ciência:

Fonte: Areas, R., et alGender and the Scissors Graph of Brazilian Science: From Equality to Invisibility. OSF Preprints, 29 June 2020. Disponível em: https://osf.io/m6eb4

Na filosofia, infelizmente a história se repete.[4] Sobre isso, apresentamos apenas um dado específico para ilustrar, entre tantas que poderiam ser aqui citados: atualmente possuímos 54 programas acadêmicos de pós-graduação em filosofia no Brasil. Destes, apenas 7 possuem na coordenação uma mulher, enquanto 47 são coordenados por homens, ou seja, apenas 12,9% dos programas têm uma mulher à frente na sua gestão, enquanto 87,1% são coordenados por homens. Como então, dada tal desigualdade, na gestão e no corpo docente conseguiríamos promover um ambiente mais equânime? Se não há hoje número suficiente de professoras nos programas de pós-graduação, como poderiam ser elas chamadas a participarem de bancas de seleção e de concurso? Bom, para isso, além das preciosas contribuições apresentadas pelo contundente texto de Cinara, podemos dizer que não há resposta única, e que talvez seja importante pensarmos coletivamente o que fazer diante desse cenário. Mas uma coisa é certa, algumas atitudes, podem e devem ser realizadas. Um bom exemplo nesse sentido, foi a criação do GT “Mulheres na ciência” que citamos mais acima, coordenado por Oliveira e Calaza na UFF. O GT produziu também um “Manual de boas práticas para processos seletivos: reduzindo o viés implícito”.[5]

De todo modo, não é apenas o viés implícito que causa a desigualdade de gênero nos programas de pós-graduação em filosofia no Brasil, pois algumas atitudes bem explícitas denunciam tal disparidade. Se a banca de concurso (ou de processo seletivo para mestrado e doutorado) é composta apenas por homens, isso torna claro que não há um ambiente equânime e, ainda que não existam no programa membras suficientes para participarem dessas bancas, por que não convidar alguma professora externa ao programa para participar? Por que não abrir um edital de credenciamento com vagas específicas para mulheres, ou que as pontue mais em relação aos homens inscritos?

A desigualdade de gênero se aprofunda ainda mais se levarmos em conta o recorte racial. Entre as docentes do gênero feminino, menos de 5% são negras, segundo o levantamento Open Box da Ciência, divulgado pelo Instituto Serrapilheira em 2020. A distribuição de bolsas também é desigual: só 2,6% são para mulheres negras. As brancas ainda são maioria, 12,3%. Se as mulheres que iniciam na graduação não se veem representadas no corpo docente da graduação e da pós-graduação, a tendência é não se sentir estimulada a seguir na carreira acadêmica. Muitas dessas estudantes ainda têm de lidar com o assédio[6] frequente de colegas e professores e também são julgadas e penalizadas quando assumem a maternidade, ou como lembra bem o texto de Cinara, assumem a tarefa de cuidar dos pais e parentes idosos.[7]

Sobre a temática dos desafios da parentalidade, vale destacar o excelente trabalho realizado pelo grupo “Parent in Science”, movimento que surgiu para levantar a discussão sobre a maternidade entre cientistas no Brasil e luta para que as avaliações curriculares para seleção de docentes não desconsiderem as barreiras impostas pela desigualdade de gênero. Para isso, o grupo criou uma série de ações para combater as dissimetrias e organizam cursos e pesquisas sobre o assunto. Esse foi o tema, aliás, de uma carta enviada pelo grupo à Plataforma Sucupira em janeiro de 2023, enfatizando a necessidade de corrigir os problemas no sistema nacional de informações da pós-graduação do Brasil de docentes que não conseguem se cadastrar ou se recadastrar nos programas por causa de queda de produtividade durante a pausa para a maternidade.

Nesse sentido, para pensar também em algumas medidas práticas para combater a desigualdade de gênero nos programas de pós-graduação em filosofia elencamos aqui algumas ações:

  • Lutar pela paridade de gênero nos ambientes acadêmicos, que seja uma luta de TODAS as pessoas, professores, técnicos e corpo discente. Para isso, se recusar a fazer parte de bancas, departamentos, programas e reuniões, onde não haja paridade ou pelo menos não sejam tomadas medidas efetivas que busquem equacionar o problema;
  • Empenhar-se para que a coordenação dos programas e cargos decisórios da universidade sejam exercidos de modo equânime entre homens e mulheres, que haja rodízio no exercício desses cargos e que professoras dos programas sejam também estimuladas publicamente a exercer essas funções;
  • Propor comissões e redigir documentos oficiais (regimentos, manuais, protocolos, etc) que adotem práticas que combatam o machismo e a misoginia na academia;
  • Criar vagas para concursos públicos e credenciamentos específicos para mulheres a fim de aumentar o número dessas no corpo docente das pós-graduações;
  • Na avaliação quadrienal, propor que sejam consideradas as demandas da maternidade e das tarefas de cuidado que são realizadas geralmente por mulheres e que impactam decisivamente na sua produtividade acadêmica;
  • Que o corriqueiro processo de credenciamento e recredenciamento, que segundo normas da Capes deve ocorrer deve ocorrer quadrienalmente, siga um princípio de paridade de gênero;
  • Propor nas ementas das disciplinas dos programas a inclusão do pensamento produzidos por mulheres filósofas;
  • Criar documentos que oficializem a distribuição igualitária de gênero nas bolsas para discentes de graduação, pós-graduação e pós-doutorado e cobrar das agências de fomento (CAPES, CNPq e outras) que adotem práticas também igualitárias na distribuição das bolsas.

Claro que essas são apenas algumas ideias e há ainda muitos outros “vieses” a serem discutidos, mas é emergente que essas questões sejam não apenas debatidas, mas refletidas em práticas concretas de combate às diversas desigualdades (gênero, classe, etnia...), que consciente ou inconscientemente reproduzimos dentro e fora da universidade.

 


Notas

[1] Sobre os números que comprovam a dissimetria de gênero na filosofia, há que se referenciar o excelente projeto coordenado pela Profa. Carolina Araújo, da UFRJ, intitulado “Quantas filósofas?” e publicado em artigos e na Rede Brasileira de Mulheres Filósofas. Dados (filosofas.org)

[2] Sobre essa temática ler: “Dia Internacional das Mulheres – Mulheres no Ensino Superior: Maioria nas salas de aula, minoria no corpo docente”, publicado na página do SINPES, em 08/03/2023. https://sinpes.org.br/site/dia-internacional-da-mulher-mulheres-no-ensino-superior-maioria-nas-salas-de-aula-minoria-no-corpo-docente/

[3] Ver também o artigo publicado na Folha de São Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2021/03/na-pos-graduacao-mulheres-sao-maioria-entre-estudantes-mas-minoria-entre-docentes.shtml

[4] Sobre essa temática ver a mesa realizada no último Encontro ANPOF, em Goiânia, em 2022, intitulada “Filosofia, gênero e regionalidade mulheres filósofas por todo o Brasil”. Nessa mesa, professoras oriundas de diferentes regiões do Brasil apresentam o índice de mulheres na pós-graduação como discentes e docentes dos programas de cada região, mostrando em gráficos e números o tamanho da desigualdade de gênero na pós-graduação em filosofia.

 https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=nwieD77WoRI

[5] Documento produzido pelo GT de Mulheres na Ciência da Universidade Federal Fluminense que apresenta algumas pequenas atitudes que podem ser tomadas para combater o viés implícito: MANUAL DE BOAS PRÁTICAS PARA PROCESSOS SELETIVOS (uff.br)

[6] Sobre a questão do assédio na universidade ver o importante texto de Silvana Ramos e Juliana Aggio publicado no Le monde Diplomatique https://diplomatique.org.br/assedio-sexual-na-universidade-um-problema-incontornavel/ e também o texto publicado por Solange Costa na coluna ANPOF: https://anpof.org.br/comunicacoes-leitura.php/coluna-anpof/assedio-mata-ou-quando-foi-que-nos-desumanizamos?cat=coluna-anpof&code=assedio-mata-ou-quando-foi-que-nos-desumanizamos

[7] Nesse ponto, aqui falo como Solange Costa e não como coordenadora do GT, agradeço por suas palavras Cinara pois passo exatamente por essa situação de ter que assumir sozinha a tarefa de cuidado de minha mãe, que possui mal de Parkinson. A tarefa do cuidado é uma carga emocional muito grande e difícil de equacionar com às exigências de produtividade acadêmica. Seu texto, muito me contempla, como com certeza, deve contemplar a enorme quantidade de mães solos que cotidianamente tem sua competência colocada à prova quando não conseguem corresponder às necessidades de seus programas.

 Site do grupo Parent in Science: https://www.parentinscience.com/


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.