Se a Filosofia não quer e não vai se diversificar, então vamos chamá-la daquilo que ela realmente é

08/12/2021 • Coluna ANPOF

Por Jay L. Garfield e Bryan W. Van Norden

11 de Maio de 2016

Tradução do Me. João Alves de Souza Neto

A grande maioria dos departamentos de filosofia dos EUA oferecem cursos de filosofia derivados somente da Europa ou do mundo anglófono. Por exemplo, dos 118 programas de doutorado em filosofia dos EUA e Canadá, somente 10% tem um especialista em filosofia chinesa como parte de seu corpo docente regular. A maioria dos departamentos de filosofia também não oferecem nenhum curso sobre tradições africanas, indianas, islâmicas, judaicas, latino-americanas, dos povos indígenas americanos ou de outras tradições não-europeias. De fato, dos 50 maiores programas de doutorado do mundo anglófono, somente 15% tem algum corpo docente regular que ensina alguma filosofia não-ocidental.

Dada a importância das tradições não-europeias tanto na história da filosofia mundial como no mundo contemporâneo, e dado o número crescente de estudantes com histórico não-europeu em nossas faculdades e universidades, isso é aterrador. Nenhuma outra disciplina em humanidades demonstra essa negligência sistêmica sobre a maioria das civilizações em seu domínio. A situação presente é difícil de justificar moralmente, politicamente, epistemicamente ou como boa prática de instrução educacional ou de pesquisa.

Cada um de nós, ao lado de muitos colegas e estudantes, temos trabalhado por décadas para persuadir os departamentos estadunidenses de filosofia a ampliar o cânon de obras que eles ensinam; temos incitado nossos colegas a olhar além do cânon europeu em suas próprias pesquisas e ensino. Enquanto somente alguns dos departamentos de filosofia tornaram seus currículos mais diversos, e enquanto a Associação Filosófica Americana tem vagarosamente ampliado a representação das tradições filosóficas do mundo em seus programas, o progresso tem sido mínimo.

Muitos filósofos e muitos departamentos simplesmente ignoram os argumentos a favor de uma diversidade maior; outros respondem com argumentos a favor do eurocentrismo que nós e muitos outros temos refutados em tantos outros lugares. A profissão como um todo permanece resolutamente eurocêntrica. Portanto, parece inútil repassar argumentos a favor de uma maior diversidade mais uma vez, apesar do quão atraente nós os achemos.

Em vez disso, nós pedimos a todos aqueles que sinceramente acreditam que de fato faz sentido organizar nossa disciplina totalmente em torno de personagens e textos europeus e estadunidenses a buscar essa agenda com honestidade e de coração aberto. Portanto, sugerimos que qualquer departamento que regularmente oferece somente cursos sobre filosofia ocidental deveria se renomear para “Departamento de Filosofia Europeia e Estadunidense”. Essa simples mudança faria o domínio e a missão desses departamentos mais claros, e sinalizaria seus verdadeiros compromissos intelectuais aos estudantes e colegas. Não vemos nenhuma justificativa a favor da resistência a esse pequeno rebranding, uma pequena mudança da imagem corporativa (apesar de aceitarmos visões contrárias na seção de comentários a este artigo), particularmente para aqueles que endossam, implicitamente ou explicitamente, essa orientação eurocêntrica.

Alguns de nossos colegas defendem essa orientação a partir do fundamento de que a filosofia não-europeia pertence somente aos departamentos de “estudos de área”, como os “Estudos Asiáticos”, “Estudos Africanos” ou “Estudos Latino-Americanos”. Pedimos àqueles que mantém essa visão sejam consistentes, e do mesmo modo localizem seus próprios departamentos nos “estudos de área”, no caso, Estudos Filosóficos Anglo-Europeus.

Outros podem argumentar contra essa renomeação sobre o fundamento de que é injusto destacar a filosofia: não temos departamentos euro-estadunidenses de matemática e física. Isso não é nada mais que um sofisma maltrapilho. As tradições filosóficas não-europeias oferecem soluções distintivas para problemas discutidos no interior da filosofia europeia e estadunidense, levantam ou enquadram problemas não atacados na tradição europeia e estadunidense, ou enfatizam e discutem mais profundamente os problemas filosóficos que são marginalizados na filosofia anglo-europeia. Não existem diferenças comparáveis em como a matemática ou a física são praticadas em outras culturas contemporâneas.

Claro, acreditamos que renomear os departamentos não seria nem de longe tão valioso quanto efetivamente ampliar o currículo filosófico e manter o nome “filosofia”. A filosofia enquanto uma disciplina possui um sério problema de diversidade, com mulheres e minorias sub-representadas em todos os níveis dentre estudantes e corpo docente, mesmo enquanto a porcentagem desses grupos aumenta dentre os estudantes universitários. Parte do problema está na percepção de que os departamentos de filosofia não são nada mais além de templos para a conquista dos homens de ascendência europeia. Nossa recomendação é direta: aqueles que estão confortáveis com essa percepção deveriam confirmá-la de boa fé e defendê-la honestamente; se eles não podem fazê-lo, incitamo-los a diversificarem seu corpo docente e seu currículo.

Isso não é para rebaixar o valor dos trabalhos do cânon filosófico contemporâneo; claramente, não existe nada intrinsecamente errado com a filosofia escrita pelos homens de ascendência europeia; mas a filosofia sempre se tornou mais rica à medida que ela se tornou mais diversa e plural. Tomas de Aquino (1225–1274) reconheceu isso quando ele seguiu seus colegas muçulmanos na leitura do trabalho do filósofo pagão Aristóteles, consequentemente ampliando o currículo filosófico das universidades de sua própria era. Esperamos que os departamentos estadunidenses de filosofia ensinarão, algum dia, Confúcio de modo tão rotineiro como ensinam Kant, que os estudantes de filosofia eventualmente terão tantas oportunidades para estudar os "Bhagavad Gita" quanto eles têm para estudar “A República”, que o experimento de pensamento do Homem Voador do filósofo persa Avicena (980–1037) será tão bem conhecida como o experimento de pensamento do Cérebro em uma Cuba do filósofo estadunidense Hilary Putnam (1926–2016), que o antigo exame crítico do estudioso indiano Candrakirti sobre o conceito de eu será tão bem estudado quanto o conceito de eu de David Hume, que Frantz Fanon (1925–1961), Kwazi Wiredu (1931– ), Lame Deer (1903–1976) e Maria Lugones (1944–2020) serão tão familiares aos nossos estudantes como seus igualmente profundos colegas do cânon filosófico contemporâneo. Mas, até lá, sejamos honestos, encaremos a realidade e chamemos os departamentos de filosofia europeia-estadunidense do que eles realmente são.

Oferecemos um último conselho aos departamentos de filosofia que ainda não abraçaram a diversidade curricular. Dadas as razões demográficas, políticas e históricas, a mudança para uma concepção multicultural de filosofia nos EUA parece inevitável. Prestem atenção ao adágio estóico: “O Destino guia aqueles que vêm com vontade, e arrasta aqueles que não.”