Será o especismo a última grande barreira ética a ser superada?

Flávio Rocha de Deus

Mestrando em Filosofia (UFBA)

27/08/2024 • Coluna ANPOF

Antes de tudo: não sou vegano, gosto de casacos de couro e todos os meus pratos prediletos, com exceção de minha sopa de ervilhas e páprica, são feitos com carne animal e seus derivados. Logo, a motivação deste texto reside em uma genuína crença de que o trabalho filosófico envolve a verificação, defesa e auto-submissão à verdades que podem ser usadas contra nós. Dito isto, seguir-ir-iremos.

A ética, na tradição ocidental[1], sempre se ancorou em um princípio fundamental: a ideia de um “outro que é igual”. Seja na Grécia Antiga com a cidadania, na modernidade com a razão e a raça, ou na contemporaneidade onde a humanidade se tornou o denominador comum; a ética, ao que parece, sempre operou por meio de uma identificação com um “nós” que, por sua vez, excluía um “eles”. Tais espécies de “fundamentos da moral”, como podemos observar em nossa história, sempre decai em hierarquias que justificam a subalternidade alheia ou um direito de superioridade.

A Guerra na Ucrânia nos mostra como a ideia de cidadania de uma pólis pode servir de desculpa anistiadora para violência e massacre de outro povo; assim como a racionalidade moderna foi abundantemente usada para justificar a subalternidade das mulheres e a escravidão de africanos; e, de igual forma, a ficção da raça legitimou, além daquela questão de cor, as barbaridades do Holocausto. A pergunta a fazer é: o que o nosso atual fundamento da moral, a humanidade, está ignorando? A resposta, evidente pelo princípio parmenídico da identidade, é: os não-humanos.

Tal percepção das lacunas da ética do reconhecimento pela identidade já foi formalmente comentada por Butler (2022, p. 12) em Desfazendo Gênero. Nesta obra de 2004, a autora, em um contexto próximo de reflexão, mas não idêntico, através de sua crítica a teoria hegeliana do Anerkennung, nos mostra que “[...] às vezes, os próprios termos que conferem ‘humanidade’ a alguns indivíduos são igualmente responsáveis por privar outros indivíduos da possibilidade de alcançar essa condição, produzindo um diferencial entre o humano e o menos-que-humano”.

É neste cenário em que o fim moral é calcado em um princípio de exclusão que, penso eu, o especismo seja, talvez, a última e mais importante barreira ética a ser superada. Especismo é um termo cunhado por Peter Singer (2004, p. 6) para definir “[...] um preconceito ou atitude de favorecimento dos interesses dos membros de uma espécie em detrimento dos interesses dos membros de outras espécies”; segundo o filósofo australiano, é isto que justifica nossa indiferença a exploração animal e sua “natural” submissão aos homens - ou “divina”, para os leitores de Gênesis 1:26-28.

A questão do especismo se mostra como essa “última barreira” para os debates da ética formal, pois o reconhecimento de sua legitimidade desloca radicalmente o fundamento da moral como conhecemos. Abandona-se um princípio de reconhecimento de um Outro Consciente e adota-se um princípio de identificação de um Outro Senciente. Aqui, a ação ética não se guia pelo reconhecimento de um Outro consciente que me observa, mas, sim, pela responsabilidade do ser consciente que percebe a desagradabilidade de seus atos.

Nossos atos, no primeiro caso, tem sua qualidade moral determinada pelo valor do Outro que recebe seus efeitos; no segundo caso, a ética se constitui pela responsabilidade do ser consciente ciente dos efeitos de seus atos. Devemos entender que a razão não nos dá direito a nenhum privilégio, apenas responsabilidades. Como nos disse Thomas Matzinger (2004, p. 620 apud Zizek, 2011, p. 64) “Não está nada claro se a forma biológica de consciência, criada até aqui pela evolução em nosso planeta, é uma forma de vivência desejável, um verdadeiro bem em si mesmo”, até pois, admitindo certa concordância Sloterdijk, o que é o homem se não o bicho que falhou em ser animal?

A postura identificada em Singer apresenta, antes de tudo, uma noção objetiva de avaliação das ações dentro de um código moral. Dado que os códigos normativos que buscam determinar como “agir bem” por meio de prescrições positivas sempre falharam, por que não considerar uma ética baseada em um princípio que, embora ainda possa conter algumas contradições materiais, parece ser menos danoso e mais claro? Em vez de tentar incessantemente definir o que é “bom”, talvez devêssemos focar em identificar o que é inegavelmente “ruim”: o sofrimento.

Ao contrário do bem, da felicidade, da beleza, que são subjetivos e culturalmente construídos, o sofrimento possui um parâmetro objetivo: a percepção do desconforto: dukkha. É nesse ponto que o especismo, a discriminação baseada na espécie, se revela como a última grande barreira ética a ser superada. Ao atribuirmos valor moral apenas aos membros da nossa espécie, estamos relativizando as dores de um grupo em detrimento da felicidade de outro, criando uma lógica em que é mais tolerável o sofrimento de um grupo subalterno do que uma felicidade menor para um grupo “superior”. É óbvio que há casos de dores muito particulares e subjetivas que não podem ser acessadas pelo outro pela mera observação, mas, sejamos honestos, a dor que importa, e que podemos tomar para nós a responsabilidade, sempre é visível.

Tanto o é, que sabemos como seria a reação de homens se fossem submetidos às condições sistêmicas das mulheres na sociedade; assim como também sabemos qual seria a reação dos brancos se fossem negros por alguns dias; e, claramente, também sabemos que qualquer burguês reclamaria a ditadura do proletariado se cometesse um crime cuja condenação fosse trabalhar em dupla jornada por um salário mínimo… Se concordou comigo até agora, vamos adiante: se qualquer humano fosse instrumentalizado da mesma forma que fazemos industrialmente com os animais... Não é preciso terminar, né?

Se a ética busca, em última instância, minimizar o sofrimento no mundo, então a superação do especismo se torna uma necessidade imperativa. Ao reconhecer a capacidade de sentir dor em todos os seres sencientes, abrimos caminho para uma ética mais inclusiva e compassiva, uma ética que assume não ser capaz de indicar formas universais de bem; e se dedica, em um “princípio de compaixão” (Cf. Schopenhauer, 2001), a não atribuir ao outro a dor óbvia que não gostaria que encostasse em si. Em vez de construir um mundo ideal, concentremo-nos em minimizar o sofrimento no mundo real.

Obviamente, apesar deste imperativo utilitarista em que a dor e prazer são “os senhores soberanos” e que “somente a eles compete apontar o que devemos fazer, bem como determinar o que faremos” (Bentham, 1979, p. 3) ser o nosso ponto de partida, ele não deve se tornar nosso local de estacionamento. Como Érico Andrade (2013, p. 105) eficientemente demonstrou em seu trabalho “O homem vazio”, o utilitarismo stricto e isolado “esvazia os seres humanos de suas motivações para oferecer uma imagem opaca do agente moral”. Ciente de tal, creio que, sem se limitar a um cálculo reducionista e maniqueísta, este horizonte pode nos fornecer locais de ações mais claras e debates mais conciliáveis.

É claro que a construção de uma sociedade pós-especista é um desafio complexo e provavelmente não ocorrerá neste século, mas, qualquer debate ético realmente integralizador e holístico, se for tratado de forma honesta, não poderá se furtar desta questão. Se hoje nós, em sua maioria, agimos de forma leviana, frívola e displicente com os veganos chamando-os de ingênuos, exagerados e utópicos; é pois esquecemos o trabalho que os abolicionistas tiveram no passado para mudar o status quo de uma sociedade que normalizava a exploração de um outro corpo que não considerava humano. E sim, estou ciente de que tal posição comparativa entre vítimas de guerra, classes subalternizadas e raças inventadas com a condição animal pode ser chamada formalmente de “falsa analogia”, mas… Será?


Referências

ANDRADE, Érico. O homem vazio: uma crítica ao utilitarismo. Trans/Form/Ação, Marília, vol. 36, n. 2, p. 105-122, 2013.

BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. 2ª ed. Trad. Luiz João Baraúna. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

BUTLER, Judith. Desfazendo gênero. Tradução: Aléxia Bretas, Ana Luiza Gussen, Beatriz Zampieri, Gabriel Lisboa Ponciano, Luís Felipe Teixeira, Nathan Teixeira, Petra Bastone e Victor Galdino. Coordenação da tradução: Carla Rodrigues. São Paulo: Editora Unesp, 2022.

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. Tradução: Maria Lúcia Mello Oliveira Cacciola. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

SINGER, Peter. Libertação animal. Tradução: Marly Winckler. São Paulo: Lugano, 2004.

ZIZEK, Slavoj. Em defesa das causas perdidas. Tradução: Maria Beatriz de Medina. Prefácio: Alysson Leandro Mascaro. São Paulo: Boitempo, 2011.


Nota

[1] Como o Oriente possui uma cosmovisão distinta, marcada por noções de animismo, as análises requerem um escopo de observação adaptado a essas particularidades culturais.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.

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