Sobre a obviedade (das urnas, da vacina, do mundo)

Luiz Alberto Thomé Speltz Filho

Mestrando em Filosofia e Letras (UFPR)

15/06/2023 • Coluna ANPOF

Foi arremessado o grande Dragão, a antiga Serpente, o chamado Diabo e Satanás, sedutor de todo lugar habitado – foi arremessado na terra, e os seus anjos com ele.

Apocalipse 12:9

Pensamos no óbvio como aquilo que não precisa ser falado ou afirmado, pois já está aí, à frente, pronto e acabado. Qualquer dúvida a seu respeito seria quase como um salto para fora da realidade e assim um mergulho no abismo da loucura. Se à nossa frente se ergue uma árvore, seria absurdo dizer que, vendo-a, não a vemos – salvo em casos em que uma investigação filosófica necessita de estrangular a linguagem, mas também isso teria de ser um absurdo. A rigor, não há como fugir do óbvio, porque ele não é uma coisa perdida entre outras, mas o aparecimento de tudo, a visão imediata de todas as coisas. 

Ainda assim, embora nos seja inescapável e então estejamos sempre no seu domínio, são poucos aqueles que sabem o que é o óbvio. Talvez tenha sido sobre ele que os filósofos estiveram ocupados, na antiguidade e na modernidade, na vida da filosofia ou fenomenologia, pois deve ser ele o sentido da senhora de todos os bons pensadores: a alétheia – a verdade, o desvelamento.

E o que é isso, o sentido da verdade? O que é o aparecimento? O que é que temos diante de nós o tempo todo? Diante dessas questões, que pela sutileza e elevação precisariam de um espírito leve para serem alcançadas e ao mesmo tempo preservadas do palavrório sofisticado daqueles que não estão comprometidos com a genuína filosofia, diante delas, o que fica claro é que o óbvio não é tão óbvio assim. Aristóteles, em algum ponto da Metafísica, nos fala que talvez o que nos seja mais evidente seja também aquilo que temos mais dificuldade de ver – mais difícil ainda, portanto, deve ser ver o que é o ver.

Certamente não queremos aqui resolver o problema dos filósofos, porque talvez nem se trate de um problema, queremos apenas relembrar que o óbvio tem que ver com aquilo que é evidente, está à nossa frente, e que de certo modo é a nossa experiência, a nossa lida direta e concreta com a vida. O que é óbvio ou, melhor, o que está no aparecimento (o que aparece) é o que está diante de nós, que podemos ver e saber, e que também é incontestável, porque não se contesta o que nos envolve e pertence ao que nos domina.

Acontece que por esses dias um conhecido saiu dizendo o seguinte: “sempre foi óbvio que as urnas eletrônicas funcionam; sempre foi óbvio que as vacinas salvam vidas...”. O que ele quis dizer é que aquilo sobre o que falava sempre esteve à vista, às claras. No entanto, a confiança na assertiva e a sua ânsia por torná-la pública me deixaram um pouco perturbado, justamente porque nada daquilo é de fato óbvio.

Não é preciso dizer muito para mostrar a obviedade da não obviedade do funcionamento das urnas eletrônicas, basta apontar para o que já está sempre aí: se não somos aqueles que dominam os códigos e a tecnologia das urnas e conhecem os interesses que as sustentam enquanto modelo para o controle dos votos, então não sabemos nada a seu respeito. Nestas condições, podemos apenas confiar nas instituições que dizem ter algum conhecimento sobre o assunto e atestam o funcionamento daqueles dispositivos, seja para endossá-los, seja para rejeitá-los, mas essa confiança no mais das vezes não se ancora nas urnas ou nessas instituições, ancora-se em nossos desejos, em nossos gostos, medos, convicções políticas e portanto em razões que podem inclusive ser muito diversas de e até mesmo contrárias àquelas que estaríamos afirmando.

Também não é muito diferente o nosso caso com as vacinas – certamente aqui me refiro às vacinas para a Covid-19, embora o raciocínio possa ser estendido a outras. Não esteve claro para ninguém a sua eficácia e o seu papel no “controle” da pandemia, nem mesmo para a comunidade científica (aliás, principalmente para a comunidade científica, que não se resume a uma instituição ou outra, como por vezes nos querem fazer crer os grandes meios de comunicação, mas se constitui como um grupo bastante heterogêneo de intelectuais com interesses muitas vezes antagônicos). Muito menos são claras as decorrências orgânicas e espirituais do uso recorrente e global dessas substâncias. E se não somos aqueles capazes de ver qualquer coisa nesse sentido, mesmo porque talvez não haja quem o possa fazer, então também não podemos atestar nada a respeito, a não ser que tenhamos algum interesse na mentira.

Grave não é tanto a pessoa crer no funcionamento das urnas ou se vacinar, mas é não reconhecer que ela o faz sem ver, sem saber o que está fazendo. Pior ainda, portanto, é ela dizer que aquilo a que se submete cegamente é óbvio. Não é. E mesmo que se apresentem argumentos e teses sofisticadas sobre o assunto, tudo isso será arrolado na base da confiança, como um cego que para se valer de algo apresenta descrições alheias de uma paisagem que nunca viu, e assim jamais será capaz de julgar se essas descrições são verídicas ou não.

O óbvio afirmado pelo meu conhecido certamente não é o óbvio da filosofia, não é o que está diante de nós e que podemos provar e comprovar. O óbvio do meu conhecido é apenas mais uma falácia moderna reverberada pelas mais diversas câmaras de eco sociais e midiáticas. Aliás, um ponto interessante é justamente esse: a necessidade dessas repetições contínuas sobre a eficácia disso ou daquilo, como se a todo instante se precisasse convencer a gente daquilo que ninguém vê.

Notemos que, para validar urnas e vacina, não basta apenas o imediato da vida, ou seja, estar aí, vendo o que está acontecendo, é preciso dar um passo, é preciso na verdade dar um passo no escuro, naquilo que não se enxerga, naquilo que não é óbvio. Em outros termos, é preciso um passo para fora da realidade.

De fato, a natureza do homem – e assim da vida – é justamente um estar sempre além de onde se está, o que na filosofia chamamos “transcendência”, mas isso de maneira alguma é um passo para fora da realidade, pelo contrário: isso é a realidade do homem. Estou na porta de casa, saindo, por exemplo, mas meus olhos já estão na rua, meu pensamento está no trabalho, meu coração está no meu propósito etc., etc., tudo está indo para frente ou, melhor, tudo já está à frente, e viver é o reconhecer a frente na qual o nosso espírito se encontra. No entanto, mesmo nesse sempre à frente, ainda assim tudo é visto, seja pelos nossos olhos, seja pela nossa alma. No caso das urnas e da vacina, o que pode estar à vista é tudo menos aquilo de que se fala, de modo que para sustentá-lo é preciso dissimular, enganar, fingir que se conhece o que não se conhece.

É certo que essa questão não envolve apenas as urnas e a vacina. Na verdade, a modernidade é o grande marco de nosso salto para a loucura, de nossa fuga da realidade. Desde a histórica condenação cartesiana dos sentidos (bastante diversa ou até mesmo oposta àquela de Platão) e a subjetivação do homem, temos “sedimentado” nossa morada no mundo das abstrações: um mundo que ninguém vê, mas que todo mundo acha que vê – ou que todo mundo tem de dizer que vê, pois o mundo das abstrações tem suas polícias para não nos deixar sair de lá, de tal modo que é capaz de fazer daquele que vislumbra e diz a realidade um criminoso real.

Na verdade, embora a modernidade seja o marco, esse movimento de fuga é antigo, beira a criação. Meu amigo Marcos S. Kondageski me afirmou que tudo isso são os ecos da queda: quando a serpente quis e conseguiu convencer o homem de que a realidade dele (enquanto a única vida dada por Deus) não era suficiente e que se quisesse poderia ter mais (ou ver mais) do que de fato tinha.

A diferença é que na modernidade o mundo da serpente se torna política e lei, condenando o homem ao pecado, à fuga, obrigando-o a governar e a trair a si mesmo: aquele que não come do fruto da abstração é negacionista, ignorante, transgressor etc. e merece (e precisa!) ser corrigido.

A serpente sussurrou ao homem que afirmar a realidade de Deus é negação – e o homem tem feito disso a sua própria sentença.

Mas também, para aqueles que não se deixam abalar, como tudo tem se repetido desde a criação, talvez essa condenação do homem pelo homem seja de alguma forma a sua salvação, na medida do nosso caminho, da nossa cruz. Disso deve seguir a afirmação: o óbvio, a realidade, é daqueles que se arrependem, isto é, daqueles que não fogem.