Sobre gerações acadêmicas e o assédio moral

Carlos Carvalhar

Doutor em Filosofia (UFBA)

10/08/2023 • Coluna ANPOF

Ao tentar melhor compreender os perfis das pessoas que hoje estão nas universidades, percebi que temos três grandes gerações acadêmicas. Cada uma dessas gerações tem características próprias, pois coexistiram na universidade na mesma época e apresentam similaridades seja em relação à idade, seja em relação a como lidam com o patrimonialismo que perpassa vários departamentos universitários. O modo como cada geração lida com o problema do assédio moral também varia, pois é possível perceber que cada vez mais ele está sendo denunciado, o que mostra uma crescente recusa ao silenciamento omisso. A primeira geração usualmente é aquela que mais promoveu e normalizou o assédio, a segunda tenta não cometer os mesmos erros, mas se cala frequentemente, enquanto é, usualmente, à terceira que cabe apontar o problema e denunciá-lo, por ser, atualmente, a mais atacada. Dado o tamanho desse artigo, é impossível ir a fundo em todas essas questões, mas ao menos poderemos lançar a discussão entre nossos pares. 

Vejamos primeiro a questão da tipologia geracional. A mais antiga é aquela que já se aposentou, ou está prestes a se aposentar, mas que ainda mantém sua influência participando de PPGs e eventos. Essa geração se formou (ou mesmo se tornou docente) durante a ditadura militar, muitas vezes se calando e se omitindo, em uma época na qual bastava apenas ter uma graduação e contatinhos influentes. A segunda é a dos docentes que aproveitaram a grande abertura e a profusão de novos concursos que surgiram na época da expansão da educação e construção de novas universidades federais promovidas pelos governos petistas, principalmente os dois primeiros do Lula. A terceira é a geração atual de pós-graduandos e de recém-doutores, os quais sofreram com a pandemia, com os baixos valores de escassas bolsas, com a falta extrema de concursos e a concorrência superespecializada, mas principalmente com o lastro social do ataque à educação promovido por aquele ser inominável e de pensamento anticientífico que ocupou a presidência.  

Obviamente isso é uma visão de macro, pois são muitos aqueles que são intergeracionais e que não estão propriamente em um desses três grupos. Por exemplo, há os que se tornaram docentes no início da redemocratização ou os que conseguiram seus cargos por concursos durante as vacas magras do governo FHC. Há ainda um quarto grupo que está começando a surgir, uma leva de novatos que irão se graduar, entrar na pós e ao final de sua formação estarão aptos a aproveitar uma nova leva prevista de concursos, a qual vai ocorrer por volta de 2030-2040, quando os docentes da segunda geração começarão a se aposentar e serem substituídos. Todavia, mesmo sem dados estatísticos para apresentar provas contundentes, podemos facilmente identificar esses três grandes grupos que aqui comento.  

Destaco que não podemos colocar uma progressão de melhoramento ético entre essas gerações, pois, por exemplo, na primeira geração tivemos tanto as pessoas perseguidas pela ditadura militar por lutarem pela democracia, quanto aqueles que subiram na vida acadêmica denunciando para a morte os coleguinhas. Além disso, a segunda geração contém os que lutaram pela expansão democrática nas universidades, tanto pelas cotas, quanto pela entrada de pessoas provenientes da classe trabalhadora nesse domínio de herdeiros e apadrinhados, mas ao mesmo tempo essa geração está cheia de decoloniais no discurso que colonizam departamentos nos moldes mais patrimonialistas possíveis, de democratas de eventos, mas que promovem assédio ou de donos de departamento autoritários, mas que escrevem sobre autoritarismo no Brasil. Já a terceira geração é a que mais tem exposto os casos de assédio, a que mais tem dado a cara a tapa nessa academia que esconde o problema através de um formalismo democrático, mas ainda é repleta de sereias cínicas vendendo seu silêncio em troca de uma escalada na carreira menos árdua. 

O assédio moral é um dos maiores problemas atuais nas universidades e é totalmente relacionado ao patrimonialismo acadêmico e à falta de alternativas para lutar contra ele. Enquanto que o assédio sexual pode ser criminalizado e combatido na justiça, o assédio moral ainda não permite nem que se registre um B.O. na delegacia. Quando alguém na academia passa por uma situação de assédio moral, a única opção que tem é registrar uma reclamação na CGU, pelo portal Fala.Br, a qual vai simplesmente delegar esse papel para a ouvidoria da universidade. O problema é que os ouvidores não são cargos técnicos, mas pessoas que são escolhidas pela atual gestão da reitoria e que estão ali, usualmente, por laços de afinidade política com quem detém o mando na universidade. Em suma, a não ser que o assediador seja inimigo comum da turma que está no poder, o que mais vemos é o papel da ouvidoria em abafar as denúncias do assédio, deixando a parte mais fragilizada no vazio e sem amparo algum, já que a CGU também não atua como deveria. Uma outra opção seria mover ações na justiça civil, mas isso requer uma soma de dinheiro, tempo e energia grande demais para quem já está fragilizado por ter passado por uma situação de assédio e ter visto que a sua denúncia foi abafada por intuições que deveriam solucionar esse problema.  

A complexidade do assédio moral é tão grande que é relativamente comum que pessoas assediadas não compreendam que estão passando por assédio, pois individualizam seu problema como fraqueza ou não o percebem relacionado a uma estrutura de poder instaurada, ou seja, não percebem a cultura assediadora da academia. Isso porque as universidades até realizam campanhas vagas contra o assédio em geral, o que é fácil, enquanto que atacar a raiz desse problema é normalmente deixado de lado, pois pode ferir um dos colegas dessa estrutura de rabos presos que a academia se tornou. Temos que observar ainda a relação entre o assédio sexual e o moral, pois o que começou com uma cantada ou uma proposta indecente, pode facilmente se tornar assédio moral, como por exemplo, quando se dificulta a progressão acadêmica de alguém que recusou a investida sexual de quem estava em situação de poder. Além disso, devemos perceber o quanto o assédio moral se beneficia do cinismo e da covardia dos próprios colegas, pois em situações assim quase todos se calarão, não querendo se queimar com quem tem o poder em mãos, demonstrando como o assédio moral requer um componente passivo para se perpetuar.  

É justamente a segunda geração acadêmica que tem essa mácula em seu perfil, pois em grande parte foi omissa, já que é intermediária entre os antigos donos da academia, com os quais sofreu e se calou, ao mesmo tempo que costuma se omitir quando vê a nova geração assediada. Tal atitude nos levou a uma normalização do assédio moral, devido o medo de represálias, mas também pelo apoderamento de estruturas que deveriam resolver esse problema, como as ouvidorias. Essa série de omissões repercutiu em peso na terceira geração, pois a questão financeira (relativa aos baixos valores e a falta de bolsas e concursos), o ataque do próprio desgoverno às universidades, bem como o desamparo ao longo da pandemia, aliados ao medo do desligamento do PPG e a consequente obrigação de devolver as bolsas, levou ao surgimento de muitas oportunidades para os casos de assédio moral. 

Para não terminar sem propor soluções, o que sugiro é simples: denuncie. Não se cale. A solução não é rápida, mas ela, necessariamente, requer passar pela identificação do problema e da discussão sobre o assunto em entidades representativas como os sindicatos e associações (os quais usualmente se fingem de mortos por conta dos rabos presos da politicagem), mas também no meio dos próprios pares, ao longo de um cafezinho em um intervalo de evento acadêmico. O silêncio convém a quem promove assédio e a covardia em evitar rebater esse ataque a nossa moral jogará esse problema para a próxima geração. 

Uma das necessidades atuais é criminalizar o assédio moral, para que se permita agir como nos casos de assédio sexual (a exemplo da lei 14.540 de 2023), onde há a legislação que o confronta. Precisamos nos movimentar para cobrar parlamentares para que também seja possível ir à justiça criminal por conta dos danos causados pelo assédio moral. Atualmente há a tentativa de tipificá-lo como crime pelo projeto de lei nº 4742/2001, o qual é bem imperfeito e está há mais de 20 anos em tramitação, mas que seria um primeiro passo para se insurgir contra um dos alicerces do patrimonialismo acadêmico. Precisamos, portanto, discutir esse assunto, pressionando para que as entidades representativas da academia, como a ANPOF, ANPOCS, ANPUH ou SBPC, os sindicatos de técnicos e docentes, bem como as associações de pós-graduandos, como a ANPG e a APGs regionais ajam para pressionar os parlamentares pela votação da lei que tipifica o assédio moral tal qual o sexual. Afinal, o assédio moral é o princípio que subjaz a qualquer desvio antidemocrático de uma academia repleta de pessoas cínicas e acovardas no poder. E isso tem que mudar, para ontem, para as próximas gerações. É nosso dever ético não se calar.