Sobre o conflito da normatividade moral

Mariana Rocha Bernardi

Doutoranda em Filosofia pela UCS

19/07/2022 • Coluna ANPOF

A diferença basilar entre norma moral e norma jurídica, que reside no fato de que a segunda possui uma sanção externa atrelada ao seu descumprimento, enquanto a primeira não, é o que nos forneceria a indicação de que a norma jurídica, pela imposição de sanção, teria um peso maior sobre os indivíduos. Entretanto, se discutirmos a fundo a normatividade moral, chegamos à inevitável conclusão de que, mesmo destituída de uma sanção externa, que impinge no indivíduo uma ação ou omissão, a norma moral é que parece verdadeiramente mover as pessoas em certa direção. 

É a normatividade moral que fornece as bases para a transformação nas normas jurídicas, que terão a previsão de uma coação imposta pelo Estado em caso do seu descumprimento. É também a normatividade moral que impulsiona os questionamentos mais profundos que operam na esfera íntima de cada indivíduo e por isso tendem ao maior peso, porque a tribuna da razão envolve mais elementos do que a tribuna exercida por uma corte judicial. É na esfera da normatividade moral que também se vislumbram as lacunas da normatividade jurídica.  É por isso que antes de se alterarem as leis postas, há que se considerar a formação das convicções morais de cada indivíduo.

Um exemplo aparentemente esdrúxulo pode ilustrar meu ponto. Em muitas escadas rolantes espalhadas pelos shoppings centers do mundo, há a orientação expressa para que as pessoas “segurem no corrimão para evitar acidentes”, e tal orientação não vem com sanção específica em caso de sua não observância. Por outro lado, no período recente de pandemia, entre as orientações para evitar a contaminação, além do uso de máscaras e o distanciamento social, se incluía “não segurar em corrimões para evitar a propagação do contágio”. Juridicamente falando, não estamos frente a uma prescrição com previsão de sanção. Em qualquer dos casos, segurar ou não segurar no corrimão da escada rolante recairá na esfera decisória individual.

Se, por um lado, a decisão for no sentido de segurar no corrimão para evitar uma queda, por outro lado haverá o risco de contágio; em sentido contrário, se a decisão for no sentido de não segurar no corrimão, está se optando pelo risco da queda. Neste ponto, alguns incautos podem afirmar: basta que todos usem algum tipo de luvas e segurem nos corrimões! Neste caso teremos, novamente, uma orientação ou prescrição sem sanção: “use luvas para segurar nos corrimões, evitar acidentes e evitar contágios”. Não haverá a imposição de sanção para o caso do não uso de luvas, até porque, se assim o fosse, entraríamos numa discussão de ordem econômica: nem todos teriam condições de adquirir pares de luvas suficientes e eficientes para evitar contágios. E, ainda assim, como no caso do uso de máscara, alguns se auto derrogariam o direito de não usar...

É na auto derrogação que parece operar a normatividade moral. Enquanto não há lei externa que obrigue os indivíduos a agirem desta ou daquela maneira, caberá a cada um deles tomar a decisão que melhor lhe aprouver e isto resulta em que, no exemplo da escada rolante, a pessoa decida entre o menor dos riscos para si. O histórico pessoal, as crenças, as informações absorvidas e o círculo pessoal de cada indivíduo são alguns dos fatores que formam sua moralidade e definem seu padrão de normatividade moral. Serão essas regras internas que operarão no indivíduo e ditarão o seu comportamento, definindo a escolha entre segurar ou não no corrimão de uma escada rolante. 

Podemos, entretanto, angariar argumentos que permitam auxiliar numa decisão mais assertiva: o que implicaria um mal maior para o indivíduo? Correr o risco da queda ou correr o risco de um contágio? Quais são as maiores probabilidades de ocorrência, queda ou contágio? E se a pessoa for acometida de um sistema imunológico mais fragilizado, mais propenso a contágios, isso afetará sobremaneira sua decisão?  

É claro que o risco de acidente parece residir numa esfera mais individualizada, enquanto o risco de contágio parece ser multiplicado, em vista de que muitas mãos passarão pelos corrimões das escadas rolantes; há, no entanto, que se atentar para o fato de que a queda de uma pessoa, a depender da quantidade de pessoas que estejam simultaneamente na escada rolante, pode desencadear uma série de outras quedas, como num efeito dominó. Talvez a escala de acidentes ainda seja menor que a escala de potenciais contágios pelo uso massivo do corrimão, ainda assim, se projetará para uma esfera coletiva. 

E quando falamos em esfera coletiva, estamos falando de ações ou omissões de um ou mais indivíduos que repercutirão nas esferas individuais de outros. Neste sentido, podemos inferir que a decisão individual em segurar ou não segurar o corrimão de uma escada possui o mesmo peso dentro da esfera da normatividade moral: tanto num caso, quanto no outro, haverá a possibilidade de que um acidente ou um contágio não atinja somente um indivíduo, mas uma quantidade de indivíduos potencialmente expostos à ocorrência de um ou outro evento. 

Uma pergunta ainda pode ser feita neste sentido: em ambas as situações, não seria caso de resultados semelhantes àqueles que a norma jurídica denomina de “casos fortuitos ou força maior”? Casos fortuitos ou de força maior são aqueles para os quais os indivíduos têm pouca ou nenhuma ingerência e poderiam ser comparados ao que denominamos de “contingências” na Filosofia. Assim, até que ponto cada indivíduo é de fato responsável por uma queda, se optar não segurar no corrimão, ou por um contágio, se optar em segurar? Pois é certo que deveremos ter acesso a outras informações mais específicas se quisermos chegar ao fim dessa questão...

Alguém pode ser acometido de labirintite e ter mais propensão a quedas. Neste caso, a opção por não segurar no corrimão lhe torna mais responsável por uma queda que lhe cause lesão a si e a outros também? Ou no caso de alguém que, sabendo estar acometido de enfermidade qualquer, não lava as mãos e opta por segurar no corrimão, diríamos que não se trataria de mero risco, mas de efetiva causa de dano a outrem? Mas como saber quem lava ou não as mãos e as moléstias que eventualmente acometem a cada um?

Aristóteles, em sua obra ética, diria que uma decisão mais assertiva, no caso de um conflito como o ora apresentado, deveria levar em consideração o conhecimento de interdições absolutas e circunstâncias particulares para que uma boa escolha seja feita. Não entraremos aqui, por motivos óbvios, no que seja uma boa escolha. Mas certamente a melhor será aquela que levar em consideração uma interdição absoluta (por exemplo, um princípio maior, como não matar ou não machucar intencionalmente a outrem) e as conjunturas específicas de uma dada situação. 

E, neste caso, o conflito não pode ser resolvido: qualquer que seja a conduta levada a efeito poderia levar a um risco específico de dano. As teorias éticas vão se debruçar sobre essa questão e apontar qual a conduta mais adequada, o que não significa que, em qualquer caso, não haja consequências específicas para quem, não segurando o corrimão, produz um acidente ou, quem, segurando, se expõe ou expõe outros a contágio. O conhecimento de interdições absolutas e circunstâncias particulares é o que determina o conteúdo decisório de cada um. Mas o conflito da normatividade moral segue sendo uma aporia, ou, ao menos, uma questão de doutrina de duplo efeito, conforme sinaliza Tomás de Aquino, em que as circunstâncias de uma ação são justificadas quando tem, ao mesmo tempo, potencial para consequências positivas e negativas.  


Referências

AQUINO, T. de. Suma Teológica. Vol. VI, Trad. Alexandre Correia. São Paulo: Faculdade de Filosofia, 1934.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

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Mariana Rocha Bernardi

Doutoranda em Filosofia pela UCS

19/10/2022 • Coluna ANPOF