Talvez devêssemos levantar a suspeita de que a escola não existe mais

Luciano Gomes Brazil

Professor Substituto na UNEB, Campus I/Salvador.

02/05/2024 • Coluna ANPOF

É sempre lembrado que, no Brasil, a crise da educação não é uma crise, mas um projeto. Um projeto que abrange bem o que sempre esteve dado, uma sociedade com herança escravocrata, um estado administrado pelas elites, um funcionamento inerte e que apenas reproduz as desigualdades. Reforçando um histórico recorrente, conquistas (já nem mais tão recentes assim) no âmbito socioeconômico com consequências positivas na educação (a lei de cotas, o ENEM, o SISU, o FUNDEB, o piso salarial dos professores da educação básica, expansão em pesquisas e em bolsas para discentes universitários) vieram seguidas de um desmonte acelerado. No caso mais recente, após a chefe do executivo em exercício ser destituída do cargo em 31 de agosto de 2016, o novo presidente levou apenas 22 dias para apresentar uma medida provisória que posteriormente seria aprovada e promulgada, ficando conhecida como a reforma do ensino médio, ou apenas como NEM.

As dificuldades atuais na realidade escolar das redes públicas decorrem daí. Ou melhor dizendo, as dificuldades enfrentadas nos dias atuais intensificam aquilo que era anterior aos tímidos avanços realizados entre 2003 e 2015. Cumpre lembrar que isto que está aqui sendo observado como avanço não cabe em uma linearidade que vem a se somar com avanços anteriores, pelo contrário, tudo que é dotado de uma qualidade positiva para a educação parece se dar muito mais como exceção e que rapidamente se perde ou é descontinuado. O NEM vem a consolidar a terrível normalidade das desigualdades brasileiras, tornando urgente sua revogação.

O que se verifica, no entanto, é algo ainda mais profundo e que considero novo em termos de problema pedagógico. O que se verifica é, por assim dizer, um esvaziamento da finalidade pedagógica da escola e, consequentemente, a sua importância ou função social.

Apenas um rápido panorama expõe esta situação. Inúmeras são as dificuldades enfrentadas por docentes quando defrontados com a realidade escolar nas redes estaduais: salários baixos, infra estrutura ruim, muitos alunos e poucas horas-aula com a mesma turma. Em uma pesquisa recente, verifica-se como na última década a taxa de professores concursados nas redes estaduais vem caindo e, pelo menos desde 2022, há mais contratados que efetivados na soma total de todos os estados. Mas mais além disso, parece que a “era da informação” fez muito mal à escola, trazendo um novo problema. Por um lado, por conta da alteração na cognição, agravada ainda mais na pandemia, há todo um elenco de problemas originados da interação excessiva com os smartphones, dificuldades de concentração, baixa cognição, escrita relapsa, pânico, insônia, depressão; por outro lado porque com tanta “informação”, parece que a autoridade da escola como transmissor cultural por excelência fica abalada. A violência urbana, a dificuldade de locomoção, a desesperança em relação ao futuro e a instabilidade no mundo do trabalho parece coroar este problema circular da educação.

Talvez nós filósofos, ou pesquisadores em filosofia, ou professores de filosofia, devêssemos levantar a suspeita de que a escola classicamente concebida já não existe mais.

O que se constata em relação à escola, repito, é um esvaziamento cada vez maior de sua função pedagógica. Não quero aqui procurar as razões para isto, mas algumas das causas talvez estejam relatados no rápido retrospecto que fiz acima: não faz mais sentido uma escola que prepararia para o mundo do trabalho se tal mundo é cada vez mais precário. A famosa “uberização” do trabalho prescinde de qualquer escolaridade. Uma escola preparatória para o trabalho, já objeto de tantas críticas, parece não fazer mais sentido na atualidade. Ao lado disto, ou talvez por conta disto, o que tem sido mais frequente é um despontar de uma escola com uma vocação social. Alunos que vão para escola simplesmente para se alimentar ou para que a família receba algum benefício, como cestas básicas. Ou mesmo alunos que prefiram estar em uma escola com ar condicionado do que outra que não possua ar condicionado, mesmo que esta última, sem ar condicionado, possua um plano pedagógico mais condizente com determinadas realidades sociais.

As demandas são imediatas, as necessidades, ainda mais básicas, a ideia de um “curso” é substituída pela subsistência: bem estar, alimentação, segurança. É preferível, por quaisquer que sejam as razões para tal, aplacar uma demanda imediata, como o calor, que cursar em uma didática inovadora.

Com o recrudescimento das necessidades básicas, como pensar a filosofia no ensino médio? Como ensinar filosofia? Penso que isto esteja longe de ser simples obstáculo, mas sim uma questão filosófica por excelência e que pode demandar ainda mais o nosso trabalho acadêmico. Em termos objetivos, acredito que estas questões aproximam a especificidade do ensino de filosofia com questões mais gerais da educação, dada a vocação pedagógica da própria filosofia. Não foi a modernidade quem coroou a filosofia como rainha das ciências? Não é a filosofia a quem cumpre frequentemente pensar questões de ordem epistemológica? E não é na escola onde se ensina a partir de uma dada configuração de conhecimento, qual seja, a partir de uma organização curricular? Uma crise sem precedentes nas escolas como a que vemos não deveria respaldar nosso trabalho filosófico? Não tem sido, desde há séculos, a vocação dos filósofos prescrutar a atualidade?

Dentre os docentes universitários, quem leciona nas licenciaturas parece ver a situação das escolas mais de perto. Por exemplo, a disciplina de estágio supervisionado acaba por fazer esse transporte de realidades, das escolas estaduais para as salas da licenciatura, pois ao supervisionar o estagiário, o docente acaba por conhecer através de seu aluno os acontecimentos, as situações, as dificuldades. Outros componentes curriculares das licenciaturas também aproximam o mundo acadêmico das escolas das redes públicas, embora este seja um caso que dependerá um pouco mais das escolhas docentes, e das disciplinas dos cursos, em relação aos conteúdos ministrados, ou também do tipo de interesse por ele almejado em relação à docência de filosofia no ensino básico.

Ao mesmo tempo, é notável que nos últimos anos o tema do ensino de filosofia tenha ganhado considerável protagonismo nos debates acadêmicos. Aqui nesta coluna têm sido frequentemente publicados artigos sobre o tema, e o GT Filosofia do ensino de filosofia têm chamado a atenção para a importância de nos voltarmos para o ensino básico. O que parece estar ganhando protagonismo nestes debates é que a questão do ensino não é secundária em filosofia, o que remete a uma questão sensível nas estruturas de pesquisa e ensino universitárias e nas formações dos graduandos.

Basta lembrar que os cursos de filosofia se dividem entre licenciatura e bacharelado e que nesta distinção se estrutura um problema para o qual ainda não encontramos uma saída adequada, qual seja, a de que cada formação segue um caminho autônomo e independente e, o principal, que tendem a não conversar entre si. De um lado, a formação para o pesquisador em filosofia, o bacharelado; de outro, a formação para o professor de filosofia no ensino básico, a licenciatura.

Não deixa de chamar atenção que o bacharel egresso, a julgar pelas exigências em concursos, esteja apto a lecionar no ensino superior, mas não no ensino básico. Notável também que, no Brasil, o bacharelado seja o curso que forma o pesquisador em filosofia, enquanto a licenciatura forma o professor do ensino básico, e curiosamente na Argentina seja o inverso (OBIOLS, 2002). Faz lembrar que entre as palavras e as coisas, os signos são arbitrários. Mas neste caso, são quase arbitrários, pois a inversão aprofunda o problema, uma vez que mesmo trocadas, as palavras se referem à mesma estruturação de cursos, em vez de uma integração de uma em outra, muito menos que dessa confusão entre o quê (curso/finalidade) designa o quê (nome do curso/finalidade), não se resulta uma terceira coisa. De tal maneira que, de um país ao a outro, a despeito da inversão na designação entre o bacharelado e a licenciatura, os cursos são pensados no mesmo modelo: por um lado se forma o professor escolar, e de outro, o pesquisador/professor acadêmico, e apenas.

Esta questão estrutural é decisiva não apenas na formação dos universitários. A estrutura de investimentos estatais brasileiro se baseia nesta distinção. Assim, as escolas de ensino fundamental fazem parte, na organização do executivo, do MEC, e dos investimentos ligados a ele, enquanto as universidades, ainda que façam parte do MEC, a pesquisa brasileira está ligada à pasta de ciência e tecnologia. Como poderia a universidade participar da construção de uma escola básica de qualidade se parte fundamental dela está ligada à outra pasta?

Em vista disso perguntamos: em um momento de recrudescimento da função pedagógica das escolas, o que a filosofia tem a dizer? Em que medida pode a nossa boa e importante pesquisa filosófica acadêmica contribuir para pensarmos a crise na educação? Como aproximar as diferentes práticas escolares e, por fim, angariar uma contribuição acerca do que aqui chamei de “o fim da escola”?

Se minha aposta estiver certa, é cada vez menor o número de filósofas e filósofos que ainda duvide da importância da relação entre o ensino e a filosofia. Mas a adesão ou a opinião ainda é pouco. E muitas vezes o debate se restringe ao ensino da filosofia no ensino médio. Existe, entretanto, uma zona de interseção entre a filosofia da educação e a filosofia do ensino de filosofia que considero relevante salientar.


Referências

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BELTRÃO, Tatiana (ed.). Reforma tornou o ensino profissional obrigatório em 1971. Senado Notícias. Brasília, mar. 2017. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/03/03/reforma-do-ensino-medio-fracassou-na-ditadura. Acesso em: 29 de abril de 2024.

BRASIL. Lei n 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Dispões sobre a reforma do ensino médio brasileiro, Brasília DF, 2017 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13415.htm Acessado em 29 de abril de 2024. 

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GELAMO, RP. O ensino da filosofia no limiar da contemporaneidade: o que faz o filósofo quando seu ofício é ser professor de filosofia? [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. 178 p. ISBN 978-85-98605-95-1. Available from SciELO Books .

NEM (Novo ensino médio) - um fracasso anunciado. Direção de Carlos Pronzato. Produção de João Carlos Novaes Luz. São Paulo, 2023. (40 min.). Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=JaxUs_6VG7k Acessado em 29 de abril de 2024.

OBIOLS, Guillermo. Uma introdução ao ensino de filosofia. Tradução de Sílvio Gallo e com revisão da tradução de Walter Kohan. Ijuí: editora Unijuí, 2002

ROCHA, Ronai Pires da. Ensino de filosofia e currículo. Santa Maria: editora da UFSM, 2015

RIBEIRO, Renato Janine. A universidade e a vida atual: Fellini não via filmes. Rio de Janeiro: editora Campus, 2002

SILVA, Leonor Gorete Soares Azevedo. A BNCC e o novo ensino médio: sentidos atribuídos por profissionais do ensino da rede estadual da Bahia. Curitiba: Appris, 2022


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