Teste seus conhecimentos: teoria da conspiração ou teoria do sabidão?

Murilo Seabra

Doutor em Filosofia (La Trobe University)

22/05/2023 • Coluna ANPOF

A literatura acadêmica sobre as chamadas “teorias da conspiração” não cessa de crescer. Elas costumam ser explicadas ora como resultado de falhas cognitivas das pessoas que as professam, ora como falhas no ambiente informacional na qual estão inseridas. Se você acredita que a Central Intelligence Agency (CIA) realizou uma obra de engenharia intelectual em escala planetária durante a Guerra Fria (trabalhando em conluio com instituições de fomento à pesquisa como a Fundação Ford, manipulando a distribuição de bolsas de estudo por trás dos panos e financiando secretamente livros, revistas e artigos para promover autores antimarxistas como Raymond Aron e difamar autores marxistas como Jean-Paul Sartre), que ela orquestrou golpes e mais golpes de estado pelo mundo afora (derrubando Mohammad Mossadeq no Irã, Jacobo Árbenz na Guatemala e Salvador Allende no Chile, por exemplo) e que participou do tráfico internacional de drogas (gerando uma epidemia de crack em Los Angeles), você tem problemas cognitivos. O seu caso pode até ser patológico. Ou então o problema não está em você, mas no meio em que vive. Nas suas amizades, talvez. Nas suas fontes de informação, certamente. Apesar de ser mentalmente saudável, você está se deixando levar por um caldo de insanidades. Seja como for, o problema existe. A questão é como explicá-lo.

Mas vejamos as coisas pelo ângulo de quem acredita nas chamadas “teorias da conspiração”. Agora tudo muda de figura. Se você não acredita que a CIA realizou uma obra de engenharia intelectual em escala planetária durante a Guerra Fria, tampouco que ela orquestrou golpes e mais golpes de estado pelo mundo afora, muito menos que ela participou do tráfico internacional de drogas, é você que tem problemas cognitivos. Ou então o problema não está em você, mas no meio em que vive. Apesar de ser mentalmente saudável, você está se deixando levar por um caldo de insanidades. O fenômeno a ser explicado agora não é o fato de que há pessoas que acreditam ingenuamente em maquinações ocultas e sim o fato de que há pessoas que ingenuamente não acreditam nelas. Ou seja, o problema não está na teoria da conspiração Tc. O problema está no bom senso. O problema está na versão oficial, na narrativa mainstream. O problema está na teoria dominante Td que se opõe a Tc.

Antes de continuar a leitura, que tal testar seus conhecimentos? Assinale V para as afirmações listadas na tabela que você julgar verdadeiras e F para as afirmações que julgar falsas. Se você quiser compartilhar suas respostas—bem como suas impressões e reflexões—para me ajudar a compreender melhor o que a comunidade acadêmica pensa sobre as “teorias da conspiração”, sinta-se à vontade para me escrever.




A expressão “teoria da conspiração” tem uma carga fortemente negativa. Ela imediatamente desqualifica a teoria Tc como mirabolante. A teoria Tc pode até ser internamente coerente. Mas ela é irreparavelmente falsa—e também perniciosa. Além de gerar problemas subjetivos, ela é uma fonte potencial de problemas objetivos. A loucura está sempre prestes a vazar do mundo interno para o mundo externo. Ela está sempre prestes a se materializar em ações estapafúrdias e sem sentido. A expressão “teoria da conspiração” é um freio que previne a insanidade coletiva. 

Mas para quem acredita em “teorias da conspiração”, o problema não é o estado de coisas reforçado por Tc e sim o estado de coisas reforçado por Td. A expressão “teoria da conspiração”, portanto, incorre na seguinte injustiça: a sua carga pejorativa recai sobre a explicação errada—e assim afasta as pessoas tanto da verdade quanto de ações consequentes com a verdade. Não é a teoria da conspiração que é politicamente perigosa. É a narrativa dominante, é Td. A expressão “teoria da conspiração” é um freio que bloqueia a consciência coletiva. 

As teorias da conspiração são sempre desbancadas por explicações mais sóbrias e mais pé no chão—ou que se apresentam como mais sóbrias e mais pé no chão. Não foi a CIA que queimou o filme de Sartre. Foi Sartre que queimou seu próprio filme escrevendo coisas de baixa qualidade. Não foi a CIA que derrubou Mossadeq. A sua queda foi o resultado da ação de forças domésticas, não de forças internacionais. Não foi a CIA que levou drogas para Los Angeles. Foram os traficantes. Para toda teoria Tc, há uma teoria Td pronta para derrubá-la e se instalar seu lugar. Afinal, Tc consiste quase sempre em uma reação à posição default. Seria exagerado dizer que para toda narrativa dominante existe uma teoria da conspiração. Mas o inverso é plenamente verdadeiro. Para toda teoria da conspiração existe uma narrativa dominante.



As teorias Tc e Td lutam entre si pela alocação de expressões legitimadoras (“pé no chão”, “sóbrio”, “sensato”, “embasado”, “racional”, que ambas querem atrair para si) e expressões deslegitimadoras (“mirabolante”, “delirante”, “insano”, “patológico”, e, claro, “teoria da conspiração”, que ambas querem afastar de si). De maneira geral, porém, a literatura acadêmica toma partido de Td. Ela considera necessário explicar Tc, não Td. Pois existe um problema com Tc, não com Td. Ao presumir que não é necessário provar a falsidade de Tc antes de tratar Tc como exemplo paradigmático de teoria descolada da realidade, a literatura acadêmica faz uma aposta deploravelmente enviesada. Ela não aventa a possibilidade de haver um erro com Td. Afinal, o fato de que há um erro com Tc já está inscrito em seu próprio nome. 

Existe uma assimetria fundamental entre o linguajar usado para descrever Tc e o linguajar usado para descrever Td. A expressão “teoria da conspiração” não só designa, ela também desqualifica Tc. Ela é negativamente carregada, por assim dizer. Ela se volta contra si mesma. Ela é autodestrutiva. É como se o réu fosse chamado de “criminoso” antes mesmo do julgamento. Já a posição default Td não é descrita de forma igualmente difamatória. As expressões “bom senso”, “versão oficial” e “narrativa dominante” são muito mais neutras do que “teoria da conspiração”. Elas não são autodepreciativas. Pelo contrário, elas apresentam a serenidade de quem está no controle da situação.






Para balancear as coisas, é preciso divisar uma nomenclatura neutra para Tc ou então uma nomenclatura igualmente pejorativa para Td—talvez “teoria do tiozão” (capitalizando em cima do estereótipo do tio que acredita em tudo que passa na grande mídia), “teoria do saguão” (para frisar seu conluio com o discurso oficial), “teoria do olavão” (em homenagem a Olavo de Carvalho, sempre deferente aos Estados Unidos), “teoria do patrão” (porque ela é imposta de cima para baixo—sugestão do meu amigo Leonel Gomes, que acha “ideologia” mais apropriado do que “teoria”), “teoria da conformação” (por causa dos seus efeitos socioapaziguantes), “teoria da conspiranão” (para jogar com a própria expressão “teoria da conspiração”—sugestão do meu amigo Breno Augusto da Costa), “teoria da constipação” (em referência ao controle anal descrito pela psicanálise, que tem consequências para a relação que se estabelece com a realidade) ou simplesmente “teoria do sabidão” (em homenagem aos tiozões olavistas e aos patrões constipados que acreditam saber de tudo). 





O importante é evitar o grande erro da literatura acadêmica de assumir de antemão que Tc está equivocada e que a crença em Tc precisa então ser explicada—e explicada de modo a ser eliminada. Pois o erro pode estar do lado da teoria do sabidão. Apesar de ter atrás de si o respaldo da mídia, talvez até de especialistas (ou pseudoespecialistas), ela pode, sim, estar equivocada. Para se determinar a verdade ou falsidade da afirmação de que a CIA realizou uma obra de engenharia intelectual em escala planetária durante a Guerra Fria, não basta examinar o quanto ela se adequa às nossas expectativas, o quanto ela é excêntrica ou alarmante. É preciso contrastá-la com a realidade. O julgamento deve ser a posteriori, não a priori. Para determinar se uma afirmação é anódina ou espantosa—se ela é plausível ou implausível—, você não precisa considerar nada além do seu conteúdo interno. Mas para determinar se ela é verdadeira ou falsa, só existe uma saída. Você tem que verificar se existe uma coincidência entre o que ela fala sobre as coisas e as coisas sobre as quais ela fala. Você precisa medi-la contra o mundo.

Então longe de ser um sinal de loucura, a defesa de Tc pode ser, na verdade, uma imensa demonstração de sagacidade e coragem—um grande “não” à intimidação pelo número, pela força ou pela calúnia. É verdade que em um ambiente saturado de sabidões, quem se recusa a fazer concessões e se atreve a defender Tc contra tudo e contra todos necessariamente coloca a própria credibilidade—e a própria sanidade—em risco. Mas a defesa de Tc não implica automaticamente em avaria cognitiva; ela pode ser um sinal de virtudes epistêmicas extraordinárias, virtudes sem as quais seria muito difícil resistir à pressão de grupo. Mais uma vez, porém, só é possível determinar se o caso é mesmo de virtudes epistêmicas louváveis ou se é antes um caso de vícios epistêmicos reprováveis de maneira a posteriori, depois de uma boa olhada no mundo. A filosofia, portanto, precisa abaixar a bola e reconhecer que argumentos têm limites. Não há como resolver o problema das teorias da conspiração—elas são fruto da loucura ou da sagacidade?—da desinformação ou da investigação séria da realidade?—no plano puramente conceitual.

Respostas: 1V, 2V, 3V, 4V, 5V, 6V, 7V, 8V, 9V, 10V

 

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