Um exercício para a imaginação política: identidades, debate público e polarização

Laiz Fraga Dantas

Doutora em Filosofia pela UFBA, Membro do GT Poética Pragmática e do Grupo de Estudos Independente Mulheres e Filosofia (GEIMF)

02/06/2022 • Coluna ANPOF

O cenário atual exige imaginação política. Se, por um lado, presenciamos o avanço das pautas sobre identidade – feminismo, luta antirracista, LGBTQIA+ –, com conquistas significativas e uma inserção cada vez maior no debate público, por outro lado, há um crescimento expressivo de um ideário conservador de grupos que desejam de retomar os antigos padrões. Esse é um cenário polarizado, não só em relação à política partidária, mas também sobre as o engajamento, ou aversão, ao avanço do debate sobre identidades. Para o conservador, esse discurso político soa inconciliável com crenças fundamentais. Aos grupos progressistas, a dificuldade de alguns em repensar certos valores é um empecilho à emancipação de grupos subalternizados. Exercitar a imaginação política supõe a incontornável questão: quais obstáculos o discurso político sobre identidades precisa transpor em direção à realização da transformação social que almejam? A questão que colocamos acima assume que o discurso político é um elemento central para a realização prática das reivindicações políticas. Em um contexto democrático, a política se faz através da contraposição entre discursos distintos que disputam na esfera pública a interpretação acerca de um conflito de interesses, o reconhecimento da relevância política de novas pautas, a reinterpretação de pautas antigas, e as narrativas disponíveis para a construção de identidades individuais e coletivas. A democracia supõe discursos políticos com alcance amplo assim, precisamos buscar estratégias para que nossas pautas alcancem públicos fora dos nichos em que elas já encontram aceitação.

A cristalização das posições políticas, de ambos os lados do debate, produz obstáculos ao exercício da crítica: a imaginação política encontra-se inibida. Não é suficiente afirmar a necessidade de falar sobre questões de identidade nas campanhas eleitorais, na pesquisa acadêmica, na universidade, na mídia, etc. A convicção de que basta afirmar a pauta encobre a questão sobre como debater. Certamente existem várias formas de conformar o discurso, que resultam em caminhos distintos para a ação política. Qual estratégia é mais eficiente em relação aos desafios que nosso contexto nos apresenta? É interessante considerar que os tipos de discursos políticos não variam apenas de acordo com qual grupo enuncia esses discursos e as necessidades dos sujeitos concernidos. Talvez precisemos ir além da representatividade – sem anular sua importância – e considerar que os pressupostos teóricos dos discursos políticos influem diretamente no modo como as pautas são articuladas e, também, em como resulta a ação política na prática. Sob quais pressupostos os discursos de contestação social, atualmente, estão fundamentados? 

Segundo Nancy Fraser [1], vivemos atualmente uma política pós-marxista, em que o marxismo perdeu lugar central no debate. Emergiram, então, as questões sobre identidades, como forma de expandir os horizontes da política para temas considerados secundários em relação às lutas por igualdade material. Assim como os discursos marxistas, o debate sobre identidades também busca a igualdade, porém o faz através da afirmação da diferença. Temos, então, duas concepções distintas para igualdade social: a igualdade como reconhecimento de todos os sujeitos como iguais, e a igualdade como reconhecimento e assimilação das diferenças. A política da diferença é produto da crítica da modernidade e do fim das utopias universalizantes. Foucault teve papel crucial ao demonstrar que o humanismo degenerou-se em um regime de vigilância panóptica, os serviços sociais em aparatos disciplinatórios, a saúde em biopoder, as práticas terapêuticas em veículos de subjetivação. Foucault nos traz também uma nova compreensão do poder, que circula de forma capilar e está nas relações, nos corpos e nas práticas. O discurso político atual é fortemente marcado pela influência do pensamento de Foucault, direta ou indiretamente, seja através do diálogo com o pensamento do autor, ou com campos teóricos desenvolvidos através dos caminhos abertos pela crítica à modernidade de Foucault. Essa tendência reflete no debate político não-acadêmico, desempenhado na esfera pública que, embora não busque referência direta à teoria, também assume o espírito foucaultiano para a política, consciente ou não desta influência [3].

A política que resulta da crítica de Foucault ao humanismo volta-se ao sujeito, seu corpo e identidade. Esta compreende a realidade a partir da chave de opostos normal/desviante, considerando que o conjunto de práticas sociais instituídas, através de um regime de saber/poder, levam a um processo de normatização do que seriam as práticas aceitáveis, configurando as demais práticas, corpos e identidades, na condição de desviantes. As subjetividades são constituídas através desses processos e o imaginário político assume a contestação e a afirmação da diferença como forma de ação política. Não por acaso, os chamados novos movimentos sociais buscam a estratégia  da afirmação da diferença, desafiando os padrões hegemônicos e alterando o imaginário geral sobre práticas aceitáveis, ou não. É interessante notar que esse vocabulário também é utilizado pelo polo oposto, o conservador, que vincula a sua ação política ao reconhecimento da identidade de um grupo e seus valores morais, em oposição àquilo que é uma ameaça a esses valores. Estes também supõem sustentar um discurso político contestatório, opositor a uma ordem social instituída, ou em vias de instituir-se. A política da diferença é certamente uma linguagem potente para nosso tempo, na medida em expõe os limites de uma compreensão de igualdade abstrata própria da modernidade. A sua capacidade de diagnóstico está provada pelo seu alcance nos debates atuais. Mas, será que a política da diferença é eficiente para produzir uma linguagem em que sujeitos, de grupos sociais distintos, sintam-se concernidos? Se temos a democracia como ponto de partida (e como meta), o incômodo e a oposição persistente às pautas sobre identidade não pode ser considerado um efeito positivo, muitos menos uma consequência inevitável da afirmação dessas pautas. Esse incômodo é sustentado, muitas vezes, por sujeitos que compartilham identidades subalternizadas, mas que não encontram identificação devido a conflitos de valores. É urgente perguntar porque não acessamos esses sujeitos. 

Para resolver essa questão, deveríamos retornar a uma compreensão moderna de igualdade abstrata? Talvez possamos encontrar uma síntese entre a modernidade e seus críticos. Um caminho possível para expandir a linguagem da política da diferença para além das identidades é considerar que os discursos políticos devem direcionar-se ao âmbito do social [4]. Este não se restringe as relações interpessoais, nem ao escopo do Estado nem da economia. O social transpassa essa divisão e rompe com a clássica separação liberal entre público e privado. O social é híbrido, constituindo-se em um ponto de troca para o encontro de grupos heterogêneos e sua gama de diferentes discursos políticos. A construção deste “espaço”, abstrato e transversal, dilui a oposição através da qual move-se a linguagem política foucaultiana, que impossibilita a distinção entre reivindicações válidas e jogos de poder, resultando em polarização. Quando os movimentos sociais têm sucesso em justificar, de forma ampla, suas necessidades, eles criam, no terreno do social, a possibilidade de distinguir, dentre as várias interpretações das necessidades, qual é mais eficiente. Isto não implica no fim dos conflitos e as redes de poder no interior das relações sociais. As sociedades atuais  constituem-se em uma rede heterogênea de posicionamentos e, em termos de linguagem política, é poliglota e diversificada. Além disso, não são meramente pluralistas, são estratificadas, constituídas através de grandes desigualdades de poder e status social. Dentro desse cenário, complexo e desigual, os discursos políticos devem buscar uma linguagem transversal, capaz de traduzir, mesmo que de forma contingente e frágil, as reivindicações comuns. Em relação ao feminismo, por exemplo, podemos, além de apontar os efeitos do machismo para as mulheres, avançar para demonstrar as desvantagens para os demais grupos, para a democracia, para a economia, para a criação de políticas públicas eficientes na promoção de igualdade. Assim, destacamos os pontos de ligação entre as demandas das mulheres e dos demais grupos sociais e mediamos entre o reconhecimento das especificidades das identidades, a democracia, a economia. Essas relações não precisam ser criadas, nos cabe localizar essas intersecções e evidenciá-las através da articulação das demandas específicas dos grupos políticos com as demandas do social. Convido a todos para o exercício da imaginação política. 


REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis Editora Vozes, 2014.

FRASER, Nancy. Um futuro para o Marxismo. Tradução: In: Revista Novos Rumos (nº 29, 1999)

______. Unruly practices: Power, Discourse and Gender in Contemporary Social Theory. Minneapolis University of Minesota Press, 1989.


NOTAS

[1] Em um texto intitulado Um futuro para o Marxismo escrito pela autora na ocasião do 150° aniversário do Manifesto Comunista publicado pela Revista Novos Rumos (nº 29, 1999).
[2] Assumimos que para realizar um diagnóstico das lutas políticas de nosso tempo é incontornável considerar como o pensamento de Foucault é recebido e assimilado nas práticas políticas reais. O objetivo não é fazer uma exegese das obras de Foucault, mas pensar sobre como ele é assimilado pela ação política, seja essa assimilação rigorosa, ou não, em relação à leitura filosófica do texto. 
[3] Buscamos como referência a compreensão de Nancy Fraser de “o social”, em seu texto Struggle over Needs, construído através da apropriação do conceito de Hanna Arendt, apresentado em A condição Humana, e da ideia de “sociedade civil” de Antonio Gramsci.