Vida longa à ABEFil

Eduardo Barra

Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR)

16/10/2024 • Coluna ANPOF

Na última semana, dia 02/10, foi fundada a Associação Brasileira de Ensino de Filosofia (ABEFIL). Para toda pessoa que valoriza e defende a presença da filosofia no currículo escolar brasileiro, esta é uma notícia muito auspiciosa e aguardada há muito tempo. Portanto, antes de tudo, é preciso saudar a iniciativa e parabenizar os seus realizadores. Os desafios são enormes e a comunidade filosófica brasileira, não importa o campo da sua atuação, precisa prestigiar, divulgar e incentivar a filiação dos seus membros a essa já vitoriosa associação.

Essa inciativa surge como uma espécie de “última flor do lácio”. Nas últimas décadas, associações congêneres foram criadas nas diversas áreas do conhecimento com correspondentes entre os componentes curriculares da educação básica: às iniciativas pioneiras no ensino de artes, matemática, física e química, seguiram-se outras na biologia, ciências sociais e história. No livro Ensino de Filosofia e Currículo (2008), Ronai Rocha faz um interessante diagnóstico sobre o sentido da emergência dessas associações: elas constituem um lugar de resistência dos “estudos metodológicos e curriculares” ao que ele denomina abordagens “sócio-político-antropológicos da educação” dominantes nas universidades brasileiras (p. 46). “Crescem as sociedades de ensino em áreas como Física, Química, Biologia, Matemática, História, ao largo e longe das faculdades de educação. Não por acaso as sociedades de ensino, ao menos no Brasil, foram sendo criadas ao longo dos anos oitenta, na exata proporção em que as exigências da realidade do ensino não mais eram atendidas pelo modelo organizacional e pela orientação predominante nas universidades.” Em suma, no diagnóstico de Rocha, deve-se às sociedades ou associações de ensino “o parco crescimento dos estudos didático-pedagógicos no âmbito das ditas áreas de ‘conteúdos’.” (p. 92)

Não precisamos estar de acordo com esse diagnóstico em toda extensão das suas polêmicas conclusões para conceder-lhe um ponto crucial: das “sociedades de ensino”, espera-se o fomento e a promoção de estudos metodológicos e curriculares acerca da respectiva área de conhecimento. Se cresceram longe, ao largo ou em oposição às faculdades de educação, não vem ao caso aqui. Importa que, nas áreas compreendidas pela quase totalidade dos componentes curriculares escolares, as associações e sociedades de ensino tenham se voltado prioritariamente aos estudos didático-pedagógicos.

Não são muito evidentes as razões por que, ao contrário do que ocorreu na física, química, biologia, matemática e história, entre outras, a filosofia não tenha conhecido a sua própria “sociedade de ensino” ainda nos anos oitenta. Neste período, a filosofia ainda estava envolta à luta pelo seu retorno à escola secundária. Urgia justificar por que a filosofia, logica e temporalmente antes de investigar o quê e como ensinar nas aulas de filosofia.

De outro lado, no mesmo período, emergia com extraordinária vitalidade um novo sindicalismo entre os professores das redes públicas estaduais que, em pouco tempo, lhes converteria na força política de defesa da escola pública mais representativa e eficaz contra o avanço das políticas neoliberais no campo da educação e das demais políticas públicas. Esse fato contribuiu para o que se sucedeu nas décadas seguintes: a proliferação das associações de professores de filosofia. Embora herdem do sindicalismo docente uma parte significativa da sua agenda política e corporativa, o contexto do surgimento dessas associações é uma fase bem mais avançada da implementação de políticas neoliberais na educação brasileira, a fase do desmonte das conquistas dos sucessivos governos do PT na esfera federal nas primeiras décadas do séc. XXI. Para a filosofia, o biênio 2016-2017 reservou as maiores tragédias: o Novo Ensino Médio e a BNCC. Sintomaticamente, as associações de professores de filosofia se consolidaram e se multiplicaram desde então.

Muito compreensivo, portanto, que a ABEFIL nasça com nexos orgânicos e genéticos com as associações de professores de filosofia de vários estados da federação. Esses nexos são notórios no próprio modo como o conjunto dos protagonistas da ABEFIL autoidentificaram-se: coletivo. Compuseram o coletivo responsável pela criação da ABEFIL tanto professores universitários quanto professores da educação básica, aqui com o predomínio das redes estaduais e federal de ensino [1].

Com efeito, o marco zero dessa mobilização foi definido retrospectivamente como sendo a mesa ocorrida durante o V Encontro da ANPOF Educação Básica, em 13 de outubro de 2022, para a qual foram convidados representantes dos professores da educação básica dos estados do CE, RS, MA e SP, sob a coordenação de Patrícia Velasco (UFABC), a quem coube fazer aos presentes o “convite seminal” para iniciarem-se as “tratativas para [a criação de] uma associação de professoras/es de filosofia, de abrangência nacional”. Fica claro que a mesa não fora anunciada com este propósito nem a associação em questão foi inicialmente pensada com os mesmos objetivos que Ronai Rocha diagnosticara nas “sociedades de ensino” nascidas nos anos 1980. O tema da mesa era sugestivamente “Experiências de (r)existência” [2], mas a resistência aqui em questão tinha “um caráter notadamente político”, caráter esse que marcou toda a programação do V Encontro da ANPOF Educação Básica, nas palavras dos próprios organizadores: em lugar “dos usuais relatos de experiências pedagógicas, professoras e professores participantes do encontro foram convidados a compartilharem suas experiências de criação e resistência no cenário de implementação da Base Nacional Comum Curricular e do Novo Ensino Médio.” (https://anpof.org.br/comunicacoes/noticias-anpof/semente-de-futura-associacao-de-professorases-e-plantada-durante-o-v-encontro-da-anpof-educacao-basica)

No coletivo constituído em 2022, que passou a se reunir regulamente desde então, a ANPOF assumiu uma posição de destaque. A liderança de Patrícia Velasco foi permanente ao longo de todo o processo, incialmente como secretária-geral da ANPOF e, em seguida, como Coordenadora do GT da ANPOF Filosofar e Ensinar a Filosofar. Além de Patrícia, participaram ativamente Christian Lindberg (UFS), na condição de coordenador do V Encontro ANPOF Educação Básica, e Taís Silva Pereira (CEFET-RJ), na condição de conselheira fiscal da ANPOF. Todavia, apesar de realizar reuniões regulares, o coletivo apenas voltou a se manifestar publicamente em 01 de agosto de 2023, por meio de um novo documento publicado na Coluna da ANPOF. O título desse documento, “Associação Brasileira de Ensino de Filosofia: breve histórico dos primeiros passos”, por si mesmo, denotava que a agenda do coletivo havia sido alterada: a “associação de professoras/es de filosofia, de abrangência nacional” dera lugar à “Associação Brasileira de Ensino de Filosofia”. A análise acima, combinada ao diagnóstico de Ronai Rocha, permite suspeitar que a alteração não era apenas semântica. Havia um claro movimento de incorporação da agenda das “sociedades de ensino” à então recém assim nomeada ABEFIL.

No documento publicado em 01 de agosto, há uma passagem que sugere uma razão para essa notória alteração: “A colaboração que transpassou, desde o início, a produção de tal proposta, é a mesma que estará presente nos momentos de diálogo e refinamento da referida proposta de objetivos e finalidades da futura associação, que poderá ter no IV Encontro Nacional PROF-FILO o primeiro grande momento, pois membros da comissão estarão na mesa de encerramento do evento, marcada para o 25/08/2023 e com título ‘Possibilidades de uma Sociedade/Associação Brasileira de Ensino de Filosofia’.” (https://anpof.org.br/comunicacoes/coluna-anpof/associacao-brasileira-de-ensino-de-filosofia-breve-historico-dos-primeiros-passos) De fato, a referida mesa fora proposta e aprovada pelo colegiado geral do PROF-FILO para integrar a programação do seu IV ENPROF-FILO em 25 de abril daquele ano, quando as reuniões regulares do coletivo signatário do documento acima ainda não haviam se tornado públicas. No convite que o PROF-FILO dirigiu, entre outros, ao GT Filosofar e à diretoria da ANPOF, justificamos a discussão proposta pela necessidade de oferecermos “aos nossos egressos a possibilidade de manter o vínculo com pesquisas que poderão ser abrigadas e fomentadas por uma entidade dessa natureza”, além de “construir uma agenda positiva para uma eventual revogação do novo ensino médio e de promover conceitualmente a revisão do enfoque anti-disciplinar incorporado à atual BNCC.” [3] O apelo à “colaboração” indicava, portanto, que ambas as iniciativas poderiam convergir, em decorrência dos “momentos de diálogo e refinamento da referida proposta de objetivos e finalidades da futura associação” que se anunciavam.

Os auspiciosos momentos de diálogo e refinamento, todavia, cessaram logo nas primeiras semanas após o IV Encontro Nacional do PROF-FILO. Nós que participamos das discussões ali ocorridas e dali derivadas certamente teremos avaliações divergentes sobre as diferenças que fizeram declinar o clima de “colaboração” inicialmente proposto. Da minha parte, considero que o desfecho foi inconclusivo e unilateral, na medida em que foi precipitado pela desistência do GT Filosofar de prosseguir com as conversas iniciadas em Campo Grande. Na Carta de Santa Maria, documento-manifesto do VII Encontro do GT Filosofar, datada de 30 de agosto, já não há qualquer menção ao evento no qual se fizeram representar nem à “colaboração” anunciada no início daquele mês no comunicado publicado no site da ANPOF e subscrito pelo GT.

Todavia, concomitantemente a tudo isso, o PROF-FILO foi enfim convidado a integrar institucionalmente o coletivo pró-ABEFIL. Mesmo com avaliações divergentes sobre os acontecimentos narrados acima, os membros do colegiado geral do PROF-FILO discutiram o convite recebido e, por consenso, deliberaram pela participação no coletivo na condição de observador, tarefa essa que foi desempenhada pelo Rodrigo de Jesus (UFMT). Também subscrevemos a chamada e fizemo-nos representar no ato de fundação da ABEFIL, na última semana. Neste momento, independentemente do modo como cada um avalia o processo que nos trouxe até aqui, posso assegurar que nossa comunidade aguarda com grande expectativa os próximos movimentos dessa história, da qual queremos continuar a fazer parte tanto individual quanto institucionalmente, com a riqueza da nossa diversidade de posições e nosso incondicional respeito à divergência de opiniões.

Concluo esta reflexão com um conselho à nascente associação, inspirado pela sua origem comum com o PROF-FILO. Por mais de uma vez, sustentou-se na cerimônia de lançamento da ABEFIL que ela nasceu da ou na ANPOF. Também no PROF-FILO costumamos dizer o mesmo. Essa convicção, contudo, tem consequências morais incontornáveis, de tal modo que não se pode sustentá-la sem assumir determinados compromissos. A ANPOF não é uma mera congregação de programa de pós-graduação; ela é um modo de compreender a nossa identidade coletiva como professores e pesquisadores de filosofia; ela é a expressão mais própria daquilo que, na filosofia universitária, pode corresponder ao que Thomas Kuhn chamou de “comunidade científica” e da normalização profissional da prática científica -- ainda que, ao contrário do que possa ocorrer nas demais disciplinas científicas, esse sentimento comunitário aqui tenha caráter mais alegórico e simbólico do que propriamente coercitivo e legitimador.

Ser gestado na ANPOF deve ser, pois, motivo de orgulho, mas exige orientar-se pelo seu ethos. A ANPOF é uma prática comunitária que ao longo dos seus 42 anos não marginalizou nenhuma posição filosófica divergente, não fomentou conflitos gratuitos, repudiou feudos de poder e autoridade inexpugnáveis aos argumentos e aos sufrágios, resistiu ao ódio e à intolerância. Uma gestação pela ANPOF, se não for entendida como um acontecimento fortuito e efêmero, pode durar uma vida inteira. No PROF-FILO, temos nos esforçados todos os dias para merecer e ostentar esse processo de permanente gestação. Tem sido um duro e complexo aprendizado. Creio que, com a nossa experiência assim inspirada, temos podido devolver à nossa comunidade o que dela herdamos, revisto e atualizado. Quero desejar o mesmo à ABEFIL. Quero desejar-lhe uma vida longa de conquistas não apenas nas suas lutas mais imediatas – e elas já são tantas! --, mas também na disseminação e expansão do ethos anpofiano, que antes de um espaço de poder, é um espaço de saberes e de sabedoria.


Notas

[1] Não encontrei estatísticas muito precisas sobre o assunto, mas consegui levantar os seguintes números, que talvez já nos permitam uma primeira comparação: nas diversas redes públicas estaduais, há cerca de 364,5 mil professores atuando no ensino médio; por outro lado, nos 38 Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, há 39 mil docentes, a maioria deles atuando também no ensino médio. Portanto, no ensino médio, a cada dez professores das redes públicas, nove são das redes estaduais e um é da rede federal de ensino. (Sites consultados: https://dadoseducacionais.c3sl.ufpr.br/mapfor-brasil e https://www.gov.br/mec/pt-br/areas-de-atuacao/ept/rede-federal/institutos-federais-de-educacao-ciencia-e-tecnologia)

[2] A gravação dessa sessão está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=SYQAJrFiP-c&list=PLwF7wYuS72FIlPGwtPR-Yla-ks9xVph_2&index=22

[3] A gravação dessa sessão está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=zRQu4RjjQ8g

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