Desafios do Ensino - Entrevista com Christian Lindberg

Nádia Junqueira Ribeiro

Doutora em Filosofia (Unicamp) e assessora de comunicação/Anpof

Sarah Bonfim

Doutoranda em Filosofia (Unicamp)

19/02/2023 • Entrevistas

Entrevista publicada originalmente na edição 160 da Revista Humanitas. Acesse o PDF aqui.

É preciso estabelecer diálogos entre as pesquisas e as práticas em sala de aula.” Essa frase sintetiza o pensamento do professor Christian Lindberg Lopes do Nascimento, que no XIX Encontro Anpof em Goiânia, ocorrido em outubro de 2022, apresentou suas impressões sobre os desafios do ensino de filosofia na educação básica. Ao destacar as dificuldades da filosofia quando comparada a outras disciplinas escolares, ele defende uma aliança  com outras áreas do conhecimento, cujo objetivo é buscar uma estabilidade que, até o momento, a filosofia não possui, dada a tradição que a dotou de uma presença volátil nos currículos de educação.

Nascimento é coordenador da Anpof Educação Básica, professor da Universidade Federal do Sergipe (UFS), na qual é vinculado ao departamento de Filosofia. Além disso, é colaborador de dois programas de pós-graduação, o acadêmico da UFS e o mestrado profissional em filosofia da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE). Confira, a seguir, a entrevista exclusiva que ele nos concedeu.

De que maneira a Anpof ou os pesquisadores em ensino de filosofia podem ajudar os professores da educação básica a trazer para a sala de aula temas mais diversos?

Christian Lindberg Lopes do Nascimento: Eu penso em alguns mecanismos. Inicialmente, através das pesquisas, com a produção de livros e textos. Acho que é esse o trabalho, inclusive, que a universidade desenvolve em nosso país. E de forma mais prática, no fomento de formação inicial de professores, nas licenciaturas. Além disso, na formação continuada dos professores e por meio dos mestrados profissionais, tanto com o PROF-
-FILO e o PPFEN do Cefet-RJ, como pelos dois programas importantes que existem hoje nas licenciaturas que são o Residência pedagógica (RP) e o PIBID. Ainda há os projetos de extensão, como o trabalho de ensino de filosofia com crianças que o professor Walter Kohan, uma referência bibliográfica para todos nós, realiza na região metropolitana do Rio de Janeiro. Um projeto desse tipo pode também fazer esse estreitamento da filosofia, com a educação básica e com o público. Ainda na área de extensão, outra possibilidade é promover cursos de formação continuada para os professores da educação básica.
 
Quais são os desafios enfrentados pela filosofia na educação básica comparada a outras disciplinas?

O grande desafio é a institucionalidade. Em um período a disciplina é obrigatória, em outro é opcional e em outro, ainda, não é nem obrigatória nem opcional. Comparado à matemática, à geografia, à história, isso tem um impacto muito grande. A gente estava vindo desde o final da primeira década deste século, em 2006-2008, com o retorno da obrigatoriedade num movimento de ascensão. Tivemos a inclusão da filosofia no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), a criação dos mestrados profissionais, uma maior quantidade de questões filosóficas no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) e o RP. Estávamos tendo concursos na educação básica nas redes estadual e federal. As escolas particulares contratando professores de filosofia. Com a modificação da legislação educacional, isso acabou trazendo prejuízos. Hoje a gente tenta manter o ritmo com essa grande quantidade de pessoas que foram incluídas nessa discussão propiciada nos últimos dez, quinze anos.

Como contornar, no ensino de filosofia, os apelos por um conhecimento instrumental, que vise preparar o indivíduo apenas para a produção capitalista?

Eu penso que há dois campos de atuação: um que é macro e outro que é micro. O campo que vou chamar de macro está relacionado às políticas estatais, de governo, que tangencia o Congresso, o Conselho Nacional de Educação e o Ministério da Educação. Esses âmbitos interferem  diretamente na política nacional de formação de professores, no PIBID, nos mestrados profissionais e nas licenciaturas. Atua também na reivindicação do ponto legal do retorno da obrigatoriedade da filosofia, uma campanha conjunta da Anpof do Ensino Básico com outras associações das áreas de geografia, ciências sociais e ensino de história. Ainda nessa esfera macro, você pode considerar os espaços regionais, que estão na esfera dos estados. Então, temos observado, cada vez mais, a articulação – de professores da educação básica com estudantes de nível superior, de pós-graduação, separados ou juntos, no esforço de constituir fóruns ou sindicatos regionais de professores de filosofia – para lutar nas suas respectivas esferas, reivindicando a manutenção ou a inclusão e o fortalecimento da filosofia e seu ensino na educação básica. E há uma esfera micro, sobre a qual temos discutido nos eventos, nos fóruns, enfim, nas oportunidades que temos tido. Embora os documentos sejam normativos, em última instância, não significa que eles são impositivos. Então, quem decide o que é e o que não é ensinado em sala de aula é o professor ou a professora. Com base no professor Alejandro Cerletti, é na sala de aula, no microespaço, que o professor ou a professora de Filosofia pode exercer sua autonomia docente e organizar as aulas em torno de um ensino filosófico, desprendido de qualquer amarra governamental. Enfim, é uma decisão a ser tomada por cada um.

Há mais espaço para que a filosofia seja interdisciplinar no ensino básico do que no ensino superior?


Por um lado, a formação de professores hoje no Brasil é, majoritariamente, uma formação disciplinar. Cada um fala para a sua caixinha, o que num primeiro momento cria muitas resistências e falta de conhecimento para dialogar com outros campos disciplinares. Não é má vontade, não é incompetência, é falta de conhecimento. Como é que você vai estabelecer diálogo com algo que você não conhece? Por outro lado, o que muitas vezes acontece com a filosofia é que a nossa formação inicial possui raízes na tradição grega ocidental. A gente aprende o que é a filosofia a partir dos primeiros filósofos. Por exemplo, Pitágoras era matemático, era filósofo, era um bocado de coisa, não é? Essa ideia do filósofo especialista é do século 19 para cá. Então, por conta da formação inicial, a gente tem muita facilidade em dialogar com as outras áreas. Nós temos facilidade para dialogar com outras áreas mais do que elas com gente. Por exemplo, a partir da estética você pode estabelecer um diálogo com o professor de literatura ou de artes.

Como avalia a experiência com a terceira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em que houve uma diluição da filosofia na área das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas?


A terceira versão da BNCC é bem distinta das outras duas. A primeira grande mudança é que ela foi redigida desconsiderando todo processo de consulta pública que tinha sido feita nas versões anteriores, ainda no governo Dilma (PT). A segunda é que ela reincorporou na legislação educacional brasileira a noção de habilidades e competências, algo que tinha sido deixado de lado devido a seus limites práticos quando o assunto é aprendizagem dos estudantes. O problema maior, talvez, é que a terceira versão serviu de referência para que os estados reformulassem suas matrizes curriculares e orientou o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), o que tem causado certa confusão e descontentamento por parte dos professores da educação básica. O fato concreto é que, com a implementação do Novo Ensino Médio (NEM), estamos diante de um cenário estranho para os pais, professores e estudantes. Confesso que temo muito pelo cenário que está sendo construído nas escolas de Ensino Médio de nosso país.

Houve um enfraquecimento da filosofia enquanto disciplina escolar?


O Observatório do Ensino de Filosofia em Sergipe (OBSEFIS), projeto que coordeno na UFS, fez um diagnóstico nacional e constatou que, em certa medida, as redes estaduais mantiveram o aspecto disciplinar da filosofia, determinando um tempo específico para seu ensino. O quadro inicialmente animador é contestado quando se observa, com mais afinco, a carga horária destinada para as aulas de filosofia. É correto afirmar que houve sua redução na maioria dos estados após a implementação do Novo Ensino Médio, confirmando as projeções feitas no processo de conversão da medida provisória em lei. Talvez o caso do Paraná seja o mais simbólico. Como foi amplamente divulgada pelos meios de comunicação e pelas redes sociais, a carga horária, que antes era designada para as aulas de filosofia, foi redistribuída para a nascente disciplina educação financeira, que tem como abordagem o empreendedorismo. Esse movimento representa uma das nuances da disputa política e ideológica do NEM, ou seja, substituir componentes curriculares com forte teor reflexivo, crítico e humanístico por outras direcionadas, única e exclusivamente, para a constituição de uma sociedade alicerçada na competição e no individualismo.

E como ficaram os outros estados?


Observou-se também que Alagoas, Amazonas, Ceará, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia e Tocantins mantiveram a carga horária. Com exceção do Rio de Janeiro, que destina 240 horas distribuídas igualmente ao longo das três séries do Ensino Médio, todos os estados citados destinam 120 horas, ou seja, 40 horas/ano. É bom destacar que esses estados adaptaram seus referenciais nos moldes da BNCC, mas mantiveram a especificidade da filosofia, preservando seu espaço em um cenário que tendia à diluição do seu conteúdo. Dois estados ampliaram a carga horária de filosofia na matriz curricular; são os casos de Sergipe e Amapá. Ambos saíram de uma carga horária de 120 horas ao longo de todo o Ensino Médio e passaram a ofertar 160 horas. No caso de Sergipe, são 40 horas no primeiro, no segundo, no terceiro e no sexto semestre letivo. No Amapá, são 80 horas na primeira série e mais 80 horas na segunda série do Ensino Médio. Tal feito resulta de discussão realizada durante o processo de consulta pública, atividades organizadas pelas respectivas Secretarias de Educação para elaborar os respectivos referenciais curriculares. Grosso modo, a participação da comunidade escolar nesse processo, em conjunto com os professores, viabilizou a expansão da carga horária para as aulas de filosofia. Em resumo, constatou-se que a carga horária destinada ao ensino de filosofia regrediu na maioria dos estados. Todavia, o cenário poderia ter sido pior caso a filosofia não fosse caracterizada como estudos e práticas no âmbito do NEM ou, principalmente, se não houvesse mobilizações por parte dos estudantes (secundaristas, graduação e pós-graduação) e dos professores (educação básica e ensino superior), assim como da comunidade filosófica nacional organizada em torno da Anpof e dos diversos fóruns regionais de ensino de filosofia ou associações/sindicatos estaduais de professores/as de filosofia.

Qual a expectativa em relação ao novo governo no que diz respeito ao Ensino Médio e ao ensino de filosofia? Acredita ser viável a revogação da nova BNCC?


Diversas entidades representativas da sociedade civil estão reivindicando a revogação do Novo Ensino Médio. A Anpof faz parte de uma articulação nacional com outras entidades acadêmicas da área de Humanas, denominada Campanha Nacional em Defesa das Ciências Humanas no Currículo da Educação Básica, que encaminhou um documento para a equipe de transição do governo Lula (PT) contendo algumas solicitações, entre elas,
o retorno das disciplinas de filosofia, sociologia, história e geografia para o currículo oficial do Ensino Médio, como também a revogação do NEM, que contempla a versão aprovada da BNC e a lei nº 13.415/2017, e da BNCC - Formação Docente. São temas importantes e para os quais o atual governo federal precisará dar atenção porque a base social que o apoiou e o ajudou a se eleger tem demonstrado poder de articulação e pressão política. Entretanto, é preciso ter ciência de que o governo Lula (PT) foi eleito tendo como colega de chapa Geraldo Alckmin (PSB), que dispensa apresentação. Entre os apoiadores tem Guilherme Boulos (PSOL) e Fernando Henrique Cardoso (PSDB), passando por Renan Calheiros (MDB), ou seja, o governo Lula (PT) representa uma frente ampla, com forças políticas ideologicamente distintas, mas que se uniram para defender a democracia em nosso país e pautar políticas públicas que efetivem ações de combate à desigualdade social. Essa frente ampla foi vista na  composição da equipe de transição que ficou responsável pela área da educação e na equipe que foi escolhida pelo presidente Lula (PT) para comandar o MEC. Além disso, terá que lidar com um Congresso Nacional mais reacionário, com as mágoas das Forças Armadas que perderão a mamata conquistada durante o governo Bolsonaro (PL), com a economia global em crise e com parcela da sociedade brasileira armada e
adepta a valores como ódio, autoritarismo, intolerância e aporofobia. Soma-se o fato de que Bolsonaro (PL), mesmo fora do Palácio do Planalto, continuará exercendo certa influência social e terá poder de mobilização.

Tudo isso pode ser definido como tempos conturbados?


Avalio que sim. O governo Lula (PT) terá uma oposição radicalizada, bem diferente da que teve nos mandatos anteriores, mas ao mesmo tempo será impulsionado pela esperança de milhões de brasileiros que o elegeu pela terceira vez para presidir o País. Espero, e vamos trabalhar para isso, que o cometa da esperança seja capaz de promover as mudanças necessárias no atual Ensino Médio. Talvez recuperando os princípios contidos na segunda versão da BNCC. Talvez tendo o modelo de Ensino Médio integrado, existente nos Institutos Federais (IFs), como referência. Talvez lutando na esfera nacional e/ou estadual para a aprovação de leis que devolvam o caráter disciplinar da filosofia. Talvez pleiteando a inserção
do ensino de filosofia no Ensino Fundamental. Em suma, o cenário futuro aponta para intensas movimentações políticas, o que torna o ensino de filosofia na educação básica fundamental para o fortalecimento da democracia em nosso país.