"Descolonizar implica em reconhecer que há uma dimensão messiânica na colonização", entrevista com Wanderson Flor

Tessa Moura Lacerda

Profa. USP

26/09/2024 • Entrevistas

Há mais de dez anos o professor Dr. Wanderson Flor Nascimento oferece a disciplina de Filosofia Africana na Universidade de Brasília, sendo um dos pioneiros a trazer esse campo epistêmico para dentro dos departamentos de Filosofia no Brasil. Ele vai ocupar o debate sobre Filosofia e Raça na última noite do XX Encontro Anpof, em Recife/PE, no dia 3/10. Ao lado dele estarão a professora Dra. Halina Leal (FURB/PUCPR) e o professor Dr. Renato Noguera (UFRRJ). Ele concedeu esta entrevista à professora Dra. Tessa Lacerda (USP/Anpof), compartilhando algumas das suas reflexões que aquecem o debate da próxima quinta-feira.

Nesta entrevista, ele comenta o que pensa sobre a colonização epistêmica, defende que há pouca nitidez do que isso, de fato, significa e critica uma perspectiva que assume a existência de um “conhecimento certo e seguro” que deve ensinar os bárbaros a pensar. Para o professor, descolonizar implica em reconhecer que há uma dimensão messiânica na colonização, que demanda uma mudança de percepção da história da modernidade. Isso passa, por exemplo, pela necessidade de reconhecer que os projetos modernos pressupõem uma inferiorização de outros seres humanos. A tarefa, indica o professor da UnB, é construir um espaço de horizontalidade propício à expressão de diversas vozes epistêmicas.

Flor ainda compartilha suas reflexões sobre os terreiros, como territórios em que existe uma pluralidade de conhecimentos articulados de forma não hierarquizada. Para ele, os terreiros são uma potente experiência de descolonização, de possibilidade de descolonização de saberes comprometidos com enfrentamento de injustiças de raça e gênero, além de serem espaços que têm muito a ensinar os discursos educacionais brasileiros. O professor, que leciona Filosofia Africana há mais de dez anos, sublinha a boa recepção por parte do corpo discente (sobretudo com a experiência política das cotas), mas indica que uma parte do corpo docente percebe nesta introdução uma ameaça ao modo canonizado de produzir filosofia. Confira a entrevista na íntegra abaixo.


Tessa Moura Lacerda: a proposta de descolonização do conhecimento está no centro de muitos debates filosóficos contemporâneos. Como você encara essa questão e de que modo é possível evitar que saberes não eurocentrados sejam lidos através de uma lógica eurocêntrica?

Wanderson: Embora falemos muito sobre descolonização do conhecimento, temos pouca nitidez do que significa, de fato, a colonização epistêmica. Isso se deve, em parte, ao fato de que os processos de construção da Modernidade – ou melhor, das diversas modernidades –, foram atravessados por discursos de emancipação, liberdade, desenvolvimento e progresso. Sob o pretexto de encontrar vias seguras para o conhecimento, conteúdos e modos de conhecer de povos que foram subjugados nos processos coloniais foram desprezados, considerados ingênuos, bárbaros, equivocados, supersticiosos. Essas vias seguras – e “corretas” para o conhecimento moderno acabaram, mesmo sem uma expressa intenção, por atuarem em um certo tipo de messianismo epistêmico, no qual o “conhecimento certo e seguro” deveria ensinar os bárbaros a pensar.  A famosa Controvérsia de Valladolid deu a tônica não apenas religiosa e política, mas também epistêmica do que deveria ser a relação entre o nascente Ocidente e seus “outros”: o primeiro deveria tutelar, educar, desenvolver os segundos. E, nesse contexto, as violências física, política e epistêmica passaram a ter uma faceta pedagógica no nascente imaginário moderno. Esse é o famoso “fardo do homem branco” ao qual se referiu o poeta inglês Rudyard Kipling.

Assim, descolonizar implica em reconhecer que há uma dimensão messiânica na colonização. E isso demanda uma mudança de percepção da história da modernidade, que pouquíssima gente está em condições de fazer, exatamente, por entenderem que estão “do lado certo da história”. Tenho insistido que a colonização não é uma questão moral, de caráter. E a descolonização também não pode ser – ao menos em um primeiro plano.

Descolonizar implica em perceber que a história da construção dos projetos modernos, ainda que bem intencionados, pressupôs uma inferiorização, ou mesmo desumanização, dos outros desse ideário do humano (mulheres, indígenas, pessoas negras, “orientais” etc.). O eurocentrismo – e tenho cada vez mais gostado da expressão “ocidentocentrismo”, tal como pensada por Oyeronke Oyewumi – se constrói como um projeto de desenvolvimento. E é isso que precisa ser problematizado, repensado.

Ramón Grosfoguel tem nos alertado para o risco do extrativismo epistêmico nesse “revisionismo” da história do etnocentrismo. Não basta apenas reconhecer que os diversos povos do mundo têm seus conhecimentos e modos de conhecer, mas, também e sobretudo, não pensar que as posições, metodologias e modos de contar a história que o Ocidente construiu sejam as corretas e, assim, estes devam ser parâmetros para construir uma pluralidade epistêmica. Para a descolonização do conhecimento, temos a difícil tarefa de construir um espaço de horizontalidade, em que as diversas vozes epistêmicas possam ser enunciadas sem o risco da exotização – e, também, o risco de uma excessiva caridade hermenêutica, que considere qualquer coisa, mesmo os equívocos de cada cultura, como conhecimentos legítimos. E essa é uma tarefa complexa, porque raramente pensamos em espaços acolhedores – e ao mesmo tempo generosamente críticos – de escuta dos diversos conhecimentos do mundo. Assim, penso que um primeiro passo para a descolonização, não recolonizante, do conhecimento, exige, utilizando um vocabulário religioso, criar um espaço de interlocução que nem divinize e nem demonize nenhuma posição epistêmica: nem as ocidentais e nem as não-ocidentais.

 

Tessa Moura Lacerda: O que significa trazer para o debate epistemológico o modo de vida de terreiro? Como você desenvolve suas próprias reflexões a partir dessas duas tradições, eurocêntrica e de terreiro?

Wanderson: Entendo os terreiros – em especial os de candomblé, com os quais tenho uma vivência mais intensa – como experiências entremundos. E isso é importante para o modo como penso que o debate epistemológico pode ser avaliado, desde o que venho chamando de um pensamento ou conhecimento enterreirados. O terreiro já surge entre os mundos coloniais e as alianças estratégicas entre povos negros e indígenas, operando uma potente articulação de saberes, de modo horizontal, entre as diversas posições epistêmicas com as quais tem contato. Assim, o terreiro não é uma bolha africana no Brasil, mas um território experiencial em que uma pluralidade de conhecimentos e modos de conhecer são articuladas de modos não hierarquizados. E, assim, se não houver uma sedução eurocêntrica na experiência dos participantes de terreiro – e esse risco existe! –, os saberes ocidentais que são aí mobilizados não serão mais eurocêntricos, mas sim, pensados de modo igualitário com os saberes africanos, afro-brasileiros e indígenas.

Essa pluriepistemicidade dos terreiros é uma potente experiência de descolonização, que nos permite perceber, em primeiro lugar, a possibilidade real e concreta de uma descolonização dos saberes e, também, de possibilidades de que esses saberes possam ser comprometidos com o enfrentamento de injustiças vinculadas com a raça, o gênero e a sexualidade. Embora o terreiro não seja a única experiência em que esse tipo de dimensão anticolonial seja possível – vemos isso também em diversas experiências quilombolas e indígenas, por exemplo – temos aqui um potente retrato de um projeto histórico em que a colonização dos saberes e uma colonização de vidas seja a posição prevalente. Essa experiência tem sido bastante explorada nos contextos educacionais, a partir de uma abordagem laica das demandas trazidas pela modificação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) pelas leis que determinaram o ensino politizado, de modo antirracista e anti-etnocêntrico, das histórias e culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas. A filosofia, apenas recentemente, tem se aprofundado nessas possibilidades. E tem aí um campo profícuo, não apenas para a filosofia da religião, mas também para a própria epistemologia e filosofia política, além de outros campos da investigação filosófica.

 

Tessa Moura Lacerda: O que significa Filosofia africana? Há uma diferença entre a Filosofia africana e a obra de autoras e autores negras/os que escrevem contra o colonialismo e o racismo mas estão inseridos em uma cultura judaico-cristã ocidental?

Wanderson: Não há uma definição consensuada sobre o que significa “Filosofia africana”. Esta é uma expressão em disputa, desde meados do século XX. E não me refiro apenas aos debates sobre a possibilidade de existência ou não de uma tal filosofia, geopoliticamente determinada. A própria definição não está assentada e pacificada. O que tem me interessado, nos últimos anos, é uma definição precária e provisória que nos faça sentido no Brasil, a partir de nossas lutas políticas e epistêmicas sobre o apagamento ou colonização de vozes no debate filosófico atual. Tenho trabalhado com uma noção de filosofia africana que se refira às reflexões sobre existência, conhecimento e ação que se deem a partir das experiências históricas e culturais do continente africano e da chamada diáspora africana, o que tenho denominado de solo histórico-cultural africano e afro-diaspórico. E, aqui, é fundamental ressaltar que esse solo determina posições epistêmicas (que são também plurais no próprio continente africano, que não pensa e conhece de uma única e mesma maneira).

Isso implica que nem toda a pessoa que nasça no continente africano está engajada em fazer uma filosofia africana, quando pensam a partir de outras experiências históricas e culturais. Também pressupõe que não haja uma recusa de investigar estabelecendo contato com as culturas e histórias ocidentais: apenas estas não são o marco central a partir do qual o conhecimento, o pensamento e os modos de conhecer e pensar sejam possíveis. Nem toda autora ou autor negro pensa a colonização e o racismo a partir desse solo histórico-cultural africano ou afro-diaspórico. Por isso, também não estariam engajadas e engajados em uma filosofia africana, tal como delineio aqui... Isso não é um problema, mas coloca limites para o reconhecimento de quem chamamos de filósofas ou filósofos africanas/os no Velho Continente Negro e na diáspora. Lembrando da aposta de não divinizar e nem demonizar nenhuma posição epistêmica, poderemos fazer bons usos filosóficos dessas diversas posições, seja de filósofas e filósofos africanas e africanos e das demais posições sustentadas por quem não pensa a partir do solo histórico-cultural africano ou afro-diaspórico, sobretudo nesse pensamento crítico que o Ocidente estabeleceu sobre sua própria produção intelectual.

 

Tessa Moura Lacerda: Poderia traçar um paralelo entre as religiões de matriz Africana e a educação? Em que medida o modo de vida de terreiro nos ajuda a repensar a educação nacional? É possível propor a partir do terreiro uma educação antirracista?

Wanderson: Os discursos educacionais brasileiros atuais estão muitíssimo interessados em pensar uma indissociabilidade entre teoria e prática, de tal modo que os conhecimentos mobilizados educacionalmente estejam disponíveis para a compreensão e resolução de problemas concretos na experiência das pessoas. Também estão engajados em valorizar a experiência de educandas e educandos no processo de aprendizagem e focalizar em processos coletivos para a construção do conhecimento nas escolas. Todos esses elementos são rotineiramente praticados nos terreiros, que são espaços eminentemente formativos, nos quais a prática e a reflexão sobre o fazer são sempre concomitantes, em que a aprendizagem pela experiência é o modelo basilar e a comunidade forma o sujeito do conhecimento. Só se aprende em uma imersão no fazer, na companhia das pessoas mais velhas que são as responsáveis pela circulação do conhecimento produzido e acumulado pela comunidade e pelas teias ancestrais desse mesmo terreiro. Aprende-se para resolver demandas do cotidiano e aprende-se resolvendo demandas do cotidiano. E é a partir do que cada membro da comunidade já sabe, que outros saberes são mobilizados e construídos, seja na revisão crítica desses saberes, seja na aquisição de saberes complementares ou suplementares. E como o sujeito do conhecimento é coletivo, o lugar que cada membro da comunidade ocupa é fundamental para que os saberes estejam em permanente aperfeiçoamento. Os discursos educacionais brasileiros têm muito o que aprender com a educação nos terreiros – lembrando que a dimensão entremundos já faz com que o terreiro aprenda com o que vem dos saberes escolares formais.

No contexto da educação antirracista, o terreiro tem um modo muito particular de lidar com o enfrentamento às hierarquias raciais e de gênero (que operam, em nosso país, de modo imbricado). Não há nesses espaços uma inversão da lógica racial ou generificada. O que acontece é uma busca pelo abandono radical dessas lógicas. Em vez de estabelecer um supremacismo negro em oposição à supremacia branca ou um supremacismo feminino em oposição à dominação masculina do patriarcado capitalista da supremacia branca – para tomar emprestada a expressão de bell hooks –, o terreiro lida com o poder e a autoridade de outra forma. A hierarquia está vinculada, nesses espaços, à senioridade, ou seja, ao tempo de vivência da experiência dos terreiros. Quem está há mais tempo na comunidade ocupa os lugares de prestígio e poder, exatamente por ter já trilhado os caminhos de aprendizagem e ser capaz de ensinar quem vem depois. Não importa se a pessoa com mais tempo de pertença à comunidade seja branca, negra, homem ou mulher. Ela deve ser respeitada e tem seu prestígio vindo desse tempo de pertença e aprendizado na comunidade. Por isso, é comum ver um homem, branco, pós-graduado, em posições hierárquicas inferiores às de mulheres negras de pouca escolaridade formal. E as respeitando. E como a idade é relativa e mutável, alguém que foi mais novo/a – e portanto ocupando lugares inferiores na hierarquia – um dia será mais velho/a, não havendo naturalizações e fixações dos lugares de poder.

As pessoas brancas precisam aprender a respeitar as pessoas negras, assim como o contrário. E isso é a lógica que aprendemos de uma ancestralidade negra e indígena – e isso é um ponto fundamental: esse enfrentamento ao racismo foi uma construção proposta por pessoas que não foram brancas.  E como o terreiro pensa que os processos de aprendizagem são formativos da vida mesma em comunidade, esse modo de enfrentar as hierarquias de gênero e raça (que, em nossa sociedade, são mais ou menos fixas e estáveis), ofereçam mecanismo fluidos e relacionalmente instáveis para que as pessoas convivam entre elas. E as escolas podem aprender com isso, pois, ao fim e ao cabo, é a comunidade quem tem a ganhar com esse tipo de reposicionamento das estruturas de poder, que impedem hierarquias violentas e desumanizadoras como o racismo e o sexismo.

 

Tessa Moura Lacerda: Por último, não em último: como foi sua trajetória, a recepção de seu trabalho e a criação da possibilidade de trabalhar na academia (eurocentrada) a Filosofia Africana?

Wanderson: Minha formação em filosofia foi a corriqueira e convencional das universidades federais brasileiras, pois me formei – com minha graduação, especialização e mestrado – em filosofia na Universidade de Brasília (UnB), com uma forte componente das filosofias analítica e continental. Devido a minhas incursões por outros espaços da UnB, fui me aproximando, de um lado, da filosofia foucaultiana e, de outro, dos estudos africanos e afro-diaspóricos, em função de minha participação no Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UnB. Paralelamente a isso, como minha graduação é uma licenciatura, me engajei em uma atividade de Extensão, durante dois anos, o Projeto Filosofia na Escola, coordenado pelos professores Walter Kohan e Álvaro Ribeiro e pelas professoras Lúcia Pulino e Bernardina Leal. Isso fez com que minha formação fosse amplamente interdisciplinar, na relação com a educação, a história, a política, a psicologia e a própria filosofia. E, após 2003, com a modificação da LDB, pela lei 10.639, passo a me dedicar, com o acúmulo das discussões sobre filosofia, educação e africanidades, à formação docente para o trabalho com as filosofias africanas e culturas africanas e afro-brasileiras na educação básica.

Desde 2013, venho oferecendo cursos de filosofia africana na graduação da UnB, em um primeiro momento como Tópicos Especiais de Filosofia Contemporânea ou Seminários Especiais de Filosofia e, desde 2017, com o nome mesmo de Filosofia Africana. Há um movimento duplo por parte da universidade com relação ao trabalho que faço. De um lado, o corpo discente e uma parte – infelizmente ainda pequena – de docentes que entendem a necessidade de ampliação do debate filosófico, incluindo outros temas e modos de fazer a filosofia. Em grande parte isso se deve à pressão que a entrada de estudantes negras e negros pelos sistemas de cotas fez sobre os currículos, pois estas e estes estudantes não queriam apenas estar presentes como corpos negros na universidade, mas também demandavam saberes produzidos pela intelectualidade negra. Por outro lado, há uma parte do corpo docente que percebe na introdução desses debates ou uma ameaça ao modo canonizado de produzir filosofia ou uma atenção a temas exóticos, que podem desviar a pesquisa do que realmente é relevante de ser estudado em filosofia.

Lembro que, em 2016, quando da discussão para a aprovação do componente curricular com o nome de “Filosofia Africana”, uma colega, muito bem intencionada (lembram da dimensão messiânica que me referi antes?), disse que eram temas relevantes, mas que seu lugar adequado seriam os cursos da Antropologia. Essa ambiguidade segue até hoje, embora a academia esteja sendo forçada a lidar com esses temas, em função das modificações legais que demandam que a formação docente englobe outras abordagens filosóficas. É um ritmo lento, mas que está avançando. Meu trabalho tem sido bem recebido por essa parte interessada em diversas universidades do Brasil e no continente africano, sobretudo a porção lusófona. Hoje, o debate sobre a presença da filosofia africana nos currículos da graduação em filosofia já não é mais uma possibilidade entre outras. Ele tende a se estabilizar e teremos de lidar com ele. Isso não significa que temos lidado exatamente de modo pacífico. Mas tenho esperança que, passado o medo de que quem estude filosofia africana, indígena, oriental queira “acabar” com os estudos já convencionados, possamos ter uma convivência mais profícua e que fortaleça o campo filosófico como um todo, pluralizando vozes, alargando horizontes.

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