Enegrecer a Filosofia e se abrir para outras epistemologias

Edson Teles

29/11/2022 • Entrevistas

Em 2020 o professor Fernando de Sá Moreira (UFF)  apresentou, em uma publicação na revista Problemata, uma fotografia de nossos currículos: os números que revelam a escassez de temáticas e referências negras nos estudos filosóficos brasileiros. O professor de Filosofia da Educação da UFF fez um levantamento dos trabalhos de pós-graduação defendidos entre 1987 e 2018 no Brasil, e constatou que apenas cerca de 0,5% das mais de 10 mil teses e dissertações em filosofia são relacionadas diretamente a filosofias e filósofos negros e filósofas negras (veja mais sobre aqui). Neste ano de 2022, pela primeira vez, o Encontro Anpof recebeu o GT Filosofia e Raça, o que revela um dos caminhos que miram a mudança desse cenário.

Neste novembro, mês da consciência negra, o professor Edson Teles (Unifesp) entrevistou a professora Halina Leal (FURB) e a advogada e mestranda em Filosofia Rosângela Martins (Unifesp) sobre essas mudanças em curso e a necessidade de enegrecer a filosofia brasileira. Eles discutem sobre como a discussão das questões raciais em nossos programas de pós-graduação e nos eventos acadêmicos incidem sobre as epistemologias de nossas pesquisas. 

Halina Leal, que integra os GTs de Filosofia e Gênero e Filosofia e Raça da Anpof,  compartilha sobre a importância do feminismo negro para nossa área como um movimento filosófico, social e político. Halina, que também é pesquisadora associada da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN) e coordena o projeto “Furb, Universidade Antirracista” promovida pela Cátedra UNESCO/UNTREF, ressalta sobre a necessidade do engajamento de todas as pessoas na luta contra o racismo, destacando que essas lutas não podem ficar somente a cargo das pessoas negras.

Mobilizando o pensamento de Achille Mbembe e o conceito de necropolítica, Rosângela Martins, também integrante do GT Filosofia e Raça,  reflete sobre como o neoliberalismo viabiliza a genealogia da violência na produção de inimigos, e no caso do Brasil, corpos racializados negros. Pensando também a partir de Abdias do Nascimento, Rosângela reflete sobre a política de guerra vivenciada no Brasil, voltada  especificamente a um grupo social racializado e expropriado dos centros das grandes metrópoles.

A presente entrevista foi republicada na edição edição 171 da Revista Humanitas


Edson Teles: Nos últimos anos a Filosofia no Brasil tem aberto outras possibilidades de pesquisas e debates, como atestam a formação dos GTs da ANPOF de Filosofia e Gênero e o de Filosofia e Raça. Como você compreende esses processos e qual a participação do pensamento feminista negro nas mudanças em curso?

Halina Leal: compreendo que a Filosofia no Brasil está em processo de avanço a respeito das questões de gênero e de raça, tendo em vista o fato de durante muito tempo tais questões estarem totalmente fora do âmbito das reflexões filosóficas, inclusive com a naturalização da ausência no sentido teórico e de não ocupação de espaços filosóficos institucionais pelo gênero feminino e por pessoas racializadas. O que aumenta consideravelmente nas pós-graduações. Acredito que tais processos (a criação dos referidos GTs, por exemplo) são os primeiros passos na desconstrução do racismo, machismo, sexismo estruturais da Filosofia no Brasil e que afetam de forma especial as mulheres negras.  

Apesar do avanço, há muito a ser feito e é neste sentido que o pensamento feminista negro contribuiu e ainda tem a contribuir nas mudanças em curso. Isto porque o pensamento feminista negro ressalta as experiências das mulheres negras, enquanto negras, nos debates de gênero, e enquanto mulheres, no contexto da raça e, ao fazê-lo, traz à tona a necessidade de se modificar estruturas opressoras que afetam a todas as pessoas, em distintos grupos. Nesta perspectiva, ele é um movimento filosófico, social e político com a intenção de agregar e transformar, que é o que necessitamos na Filosofia.   


Edson Teles: Diante do contexto de transformações na área disciplinar da Filosofia e das lutas antirracistas no país, quais as possibilidades de enegrecer a filosofia no Brasil?

Halina Leal: enegrecer a Filosofia é sempre possível, mas me parece que não dá mais para ficarmos no âmbito da “possibilidade”. Devemos enegrecer a Filosofia, seja a partir de seu conteúdo epistêmico, seja a partir do reconhecimento de pessoas negras como produtoras de conhecimento filosófico. No primeiro sentido, devemos considerar outras matrizes filosóficas, para além da eurocêntrica. No caso da perspectiva da negritude, a filosofia africana deve ser incluída nos nossos currículos, com reconhecimento do amplo referencial teórico que existe neste campo. No segundo sentido, necessitamos pensar em políticas de inclusão, considerando que a filosofia não está destacada da sociedade que reproduz situações em que as pessoas negras têm menos possibilidades de acesso a determinados espaços institucionais. 

Para ambos os movimentos, é necessário que as pessoas que ocupam os espaços filosóficos (na sua maioria, ainda pessoas brancas) se engajem na mudança. Em outras palavras, as lutas antirracistas não podem ficar somente a cargo das pessoas negras, cujas dificuldades que enfrentam já são enormes.


Edson Teles: como a discussão das questões raciais em nossos programas de pós-graduação e nos eventos acadêmicos incidem sobre as epistemologias de nossas pesquisas?

Halina Leal: acredito que incidem não somente na ampliação do escopo epistemológico, mas na delimitação da dita “filosofia ocidental”. E em que sentido este último ponto é importante? No sentido de que, o que não somente denominamos, mas estudamos e reproduzimos como “a” filosofia é um tipo de filosofia dentre outras. Não é o universal, o qual devemos assumir como referência em detrimento de outras formas de viver, pensar, agir e significar a realidade. Quando trazemos a reflexão racial para a discussão, conseguimos, inclusive, identificar e trabalhar filosoficamente a reprodução do racismo em argumentos de grandes filósofos. O que nos permite debater a respeito da complexidade do tema, compreendendo o fato de que a “filosofia ocidental” ao mesmo tempo em que trouxe e traz grandes contribuições críticas a vários assuntos serviu, e pode continuar servindo, à manutenção de pensamentos racistas. Precisamos compreender que encarar tais pontos não traz nenhum prejuízo à filosofia. Muito pelo contrário, a enriquece e a amplia. 


Edson Teles: você analisa em sua pesquisa o impacto de uma "necropolítica" enquanto política estatal de definição sobre o valor da vida. Poderia explicar para nós qual o significado do termo "necropolítica" e como ele atua no cenário brasileiro?

Rosângela Martins: o termo necropolítica, utilizado e difundido pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, diz respeito a uma gestão política sobre a morte e a vida, e incide de maneira sistêmica no processo de subjetivação de corpos considerados subalternos, excedentes, descartáveis e inúteis na sociedade moderna. Mbembe utiliza ferramentas conceituais como biopolítica, estado de exceção, poder soberano para correlacionar com a colonização. Tratando-se da realidade brasileira, não podemos deixar de considerar a herança colonial e o racismo estrutural que aflige a população negra, majoritariamente. Uma verdadeira política de extermínio em dimensões diferenciadas de atuação. Nas democracias modernas torna-se ainda mais evidente a atuação do Estado, por exemplo, ao regular comportamentos, controlar condutas em nome da garantia da ordem e de uma suposta ideia de segurança, instrumentalizada pelo direito. Acrescentaria ainda que o neoliberalismo viabiliza a genealogia da violência na produção de inimigos, e aqui no caso, corpos racializados negros.


Edson Teles: há, no Brasil, uma violência racial historicamente praticada pelo Estado e que se fundamenta nos discursos de "legítima defesa" ou de "defesa da ordem". O que esses argumentam querem dizer? Qual a implicação deles em uma sociedade com estrutura racista?

Rosângela Martins: a legítima defesa é um instituto jurídico, tipificado em lei, mas vai além de repelir injusta agressão, como alguém que invade uma propriedade para subtrair algo, ou ameaça a integridade física de outrem. Nesse contexto, vale dizer que trata-se da formulação de um discurso que interfere no modo de agir dos agentes públicos quando estão em operações policiais nas periferias, por exemplo. O arcabouço jurídico serve como instrumentalização desse projeto necropolítico. O estado ao mesmo tempo em que exerce a função de proteção, pune condutas, que do ponto de vista normativo representam a desordem. O que justificaria uma zona de indecidibilidade entre o estado de direito e um estado de exceção em defesa da ordem democrática. Ocorre que o preço é altíssimo, considerando o fato de que precisa haver um “inimigo” a ser combatido. Nessa perspectiva, a existência do “negro” (preto, pobre e periférico) implica uma espécie de ameaça (fictícia) à qualificação da vida dos brancos, dentro da lógica da nossa sociedade com estrutura racista. 

Achille Mbembe como um herdeiro do pensamento de Frantz Fanon, revisita a ideia de uma face noturna da democracia, a aplicação de uma lei fora da lei, em nome da preservação. A generalização do medo, a sensação de insegurança acabam por autorizar o Estado de Direito a agir em condições de exceção, promovendo permanentemente intervenções nos territórios e nos corpos colonizados.

Segundo o autor, “a produção da morte em larga escala é feita a partir de um cálculo instrumental da vida e do político” (Políticas da Inimizade). Embora a legítima defesa seja um instituto jurídico, tipificado em lei, serve como escopo para ações arbitrárias de agentes públicos da segurança pública, como uma licença deliberada para agir de forma violenta, inclusive para matar. E há um respaldo do estado, no campo político, se observarmos as tentativas de ampliação do excludente de ilicitude para policiais em exercício da função. 


Edson Teles: tanto Abdias Nascimento (genocídio), quanto Achille Mbembe (necropolítica), ao analisarem a amplitude da violência racial, apontam para um processo de produção do inimigo. Quais as aproximações entre o pensamento dos dois autores e como utilizá-los para refletir sobre a lógica governamental da "legítima defesa"?

Rosângela Martins: a força motriz da violência racial reside na cisão da sociedade entre aqueles considerados úteis e os supérfluos, excedentes e inúteis, de acordo com a herança de uma guerra colonial. Tanto Achille Mbembe quanto Abdias do Nascimento elucidam o quão violenta é a origem do estado, com base no regime colonial, por mais que as democracias modernas procuram ocultar. Hoje, o que vivenciamos no Brasil é uma política de guerra, voltada  especificamente a um grupo social racializado e expropriado dos centros das grandes metrópoles.

A grande questão é a atuação do Estado enquanto instituição pública que visa a garantia de privilégios de uma minoria, parafraseando Mbembe, cuja essência é buscar a própria preservação. Para se valor da de uma estrutura jurídica-política, vai buscar por todos os meios justificar e legitimar a defesa da ordem pré-estabelecida. O racismo é o motor que viabiliza essa prática. 

No Brasil, em especial, a democracia racial é a responsável pela produção de um inimigo íntimo. Abdias Nascimento, há 40 anos, sinalizava para “o esotérico organismo dessa democracia racial tão compulsória quanto dogmática” (O genocídio do negro brasileiro) como um processo de estratégias de genocídio, eliminação da raça negra através de dimensões de uma política de apagamento como na ausência de dados sobre o quesito cor/raça nas estatísticas demográficas, branqueamento da raça, de uma história não oficial das lutas e resistências abolicionistas, no embranquecimento cultural, a não interação no processo sociocultural brasileiro, mas sobretudo, a produção subjetiva racista que penetrou o tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade do país, da classificação grosseira que inferioriza os negros como “selvagens e inferiores”, dentre outras. O que ele denuncia em seu trabalho é o poder concentrado nas mãos das classes dominantes brancas em favor de seus interesses, ou seja, o controle social e cultural além dos órgãos como o governo, a arquitetura jurídica-política, o capital, a polícia, etc.

Nessa perspectiva, é importante dizer que trata-se de uma análise à luz da filosofia política como mostra Achille Mbembe e Abdias Nascimento, longe de nos abrirmos ao pessimismo o que nos parece um tanto apocalíptico, porém é o que temos visto e vivenciado no Brasil até os dias de hoje.

Acesse aqui o pdf da entrevista republicada na edição 171 da Humanitas.

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