"Filosofia Africana não tem relação direta com racismo", entrevista com Renato Noguera

Tessa Moura Lacerda

Profa. USP

06/09/2024 • Entrevistas

Foi somente a partir da segunda década do século XXI que o professor Dr. Renato Noguera (UFRRJ) pôde encontrar um ambiente favorável para publicar assuntos que tinha aprendido desde a infância. “Além do meu avô, minhas avós e intelectuais do movimento negro me ensinaram filosofia africana”, compartilha o professor que é um dos maiores pesquisadores desta área no país. Ele estará no XX Encontro Anpof, compartilhando a última mesa sobre Filosofia e Raça, no dia 3 de outubro, com a professora Dra. Halina Leal (FURB/PUC-PR) e com o professor Dr. Wanderson Flor (UnB). Ele concedeu esta entrevista à professora Dra. Tessa Lacerda (USP), que compõe a atual diretoria da Anpof, na qual ele compartilhou um pouco de sua trajetória e de seus posicionamentos sobre Filosofia Africana, Filosofia Ocidental e racismo.

Uma das defesas do professor, nesta entrevista, é que para falar de Filosofia Africana não é indispensável falar de racismo. Pelo contrário, para falar de Filosofia Ocidental é preciso falar de racismo. Ele argumenta, nesta conversa, sobre a necessidade crescente do racismo ser uma agenda da branquitude. Ele ainda compartilha como compreende a Filosofia Africana, como ela deve ser abordada nos currículos e a sua relação com os terreiros brasileiros. Confira.


Tessa Lacerda: o que é Filosofia Africana? Poderia, na medida do possível, sintetizar e apresentar para nossa comunidade o que se entende por Filosofia Africana?

Renato Noguera: Em que consiste a Filosofia Africana? O enfrentamento dessa questão se assemelha à interrogação, o que é Filosofia Ocidental? Sem dúvida, estamos diante de um vasto conjunto de perspectivas. Não se trata de um território polissêmico e complexo, mas podemos ter um breve desenho com alguns elementos.  Aqui cabe uma breve digressão. O continente africano é plural e multifacetado e além do território geográfico somente, precisamos, em certa medida, deslocar e ampliar algumas perspectivas sobre a África. A expressão conceitual África global contribui para o debate.

Por África global se deve compreender as diásporas africanas nas Américas, Ásia, Europa, outras regiões do planeta e como as dinâmicas culturais são preservadas e se transformam mantendo e rearticulando laços com o continente. Diante de fluxos histórico-culturais africanos e afroperspectivistas, a Filosofia Africana pode ser compreendida como o vasto conjunto de produções de autorias do continente e afro-referenciadas. Dentre os eixos dessas produções existem noções recorrentes, tais como ancestralidade e comunidade. Em outros termos, Filosofia Africana recobre a produção que se organiza em torno do enunciado de Ptahotep, uma arte cuja a destreza nunca se torna perfeita.


Recentemente ouvi de uma aluna de graduação um questionamento sobre a necessidade de criar uma área específica de Filosofia Africana. Ela argumentava que um filósofo africano antigo poderia ser objeto de estudo em uma disciplina de História de Filosofia Antiga, um filósofo africano que viveu na época da Idade Média poderia ser objeto de estudo em uma disciplina numa disciplina de História de Filosofia Medieval, e assim por diante. O que você acha disso?

A minha análise parte de uma abordagem filosófica africana, não se tratam de perspectivas diferentes. Sem dúvida, filósofos africanos da antiguidade devem ser estudados no campo da historiografia filosófica antiga. Isso não impede o fortalecimento da área de Filosofia Africana, não se trata de uma coisa ou outra. Trata-se de agregar e ampliar a potência do pensamento, portanto ao invés de “isso ou aquilo”. Eu defendo “isso e aquilo”.


Em que medida o pensamento de terreiro, autenticamente brasileiro, nos ajuda a entender a Filosofia Africana? Que tipo de relação podemos estabelecer aí?

O terreiro tem bases em sistemas de pensamento iorubá, bantu-kongo, dentre outros. A partir dessas cosmopercepções, encontramos as condições histórico-culturais sobre e através das quais noções, conceitos e argumentos filosóficos são organizados. Por exemplo, a leitura de filósofas como Sophie Oyeronke Oyewumi se organizam dentro do mundo iorubá.  O terreiro incorpora elementos-chave, inclusive, no caso de Olúwolé, ela trabalha com a filosofia de Orunmilá, filósofo que também foi sacerdote religioso, homônimo do orixá do Culto a Ifá, presente em candomblés. As relações são diversas, nós temos muitas dissertações, teses e estudos de pós-doutorado contribuindo nesse sentido. Eu vou mencionar apenas alguns trabalhos que eu acompanhei, tais como as pesquisas de mestrado de Marli Ògún Méjìre no Programa de Pós-Graduação de Filosofia da UFRJ, de Obalera de Programa de Pós-Graduação de Filosofia da UFRRJ e de doutorado de Carlos Eduardo da Silva Rocha Programa de Pós-Graduação de Filosofia da UFRJ.


Você entende que para falar de Filosofia africana é preciso falar sobre o racismo, nos situando em uma sociedade fundamentalmente violenta e racista? É preciso estabelecer essa relação na apresentação das filosofias africanas e falar dos apagamentos e epistemicídios em uma chave antirracista?

Para falar de Filosofia Africana não é indispensável falar de racismo, pelo contrário, compartilho da tese que para falar de Filosofia Ocidental é preciso falar de racismo, supremacia branca e todas as implicações do pacto narcísico da branquitude. O sistema racista foi criado e tem sido organizado e conduzido por gente branca que ganha com a discriminação étnico-racial. Portanto, nada mais adequado do que convidá-las para lidar com esse problema. É como se perguntássemos para mulheres vítimas de agressão masculina o que elas devem fazer para enfrentar o patriarcado, o machismo e a misoginia. Óbvio que os feminismos têm que se posicionar contundentemente, mas o problema deve ser reportado aos agressores em primeiro plano. Filosofia Africana não tem relação direta com racismo.  Sem dúvida, políticas antirracistas são fundamentais, mas é preciso que seja, cada vez mais, uma agenda da branquitude. 


Por último, não em último: como foi sua trajetória, a recepção de seu trabalho e a criação da possibilidade de trabalhar na academia (eurocentrada) a Filosofia Africana?

Eu tive uma trajetória privilegiada, tive vivência familiar griot, meu avô materno trouxe história do avô dele, passei pela circuncisão em casa ainda bebê. Além do meu avô, minhas avós e intelectuais do movimento negro me ensinaram filosofia africana. Na Universidade, a conjuntura das décadas de 1990 e primeira década do século XXI eram desfavoráveis para inclusão dessas pesquisas, então precisei esperar até que o debate público estivesse “autorizado” e comecei a debater e publicar assuntos que eu já tinha aprendido desde a infância.  O maior obstáculo foi realmente o racismo epistêmico que recusava qualquer debate que fugisse da tradição ocidental. Atualmente, o mundo acadêmico tem abrigado cada vez mais, atividades de pesquisas filosóficas têm sido cada vez mais exercícios críticos e não dogmáticos que não ficam restritos às escolas ocidentais. Não é apenas sobre a minha trajetória, mas se trata das faculdades de filosofia cumprirem o seu papel principal, pensar com radicalidade os caminhos e descaminhos do pensamento.

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