É preciso estar atento e forte! Solidariedade às mulheres argentinas diante de mais um crime de ódio - Nota do GT Filosofia e Gênero da Anpof

24/05/2024 • Notas e Comunicados

Através dessa carta de repúdio nos solidarizamos com o povo argentino neste momento tão grave de sua história em que um governo de extrema-direita ataca a ciência, a universidade, e retira os direitos dos mais vulneráveis.

Particularmente, nos referimos ao crime ocorrido na madrugada de segunda-feira, 6 de maio de 2024, quando um homem atirou uma garrafa cheia de líquido inflamável para o quarto 14 de um hotel familiar em Barracas, Buenos Aires. Lá dentro estavam quatro mulheres, das quais apenas uma sobreviveu.

Pamela Cobbas, 52 anos, morreu horas depois do ataque. A sua companheira, Mercedes Roxana Figueroa, da mesma idade, morreu na quarta-feira, depois de ter agonizado durante 48 horas com queimaduras em 90% do corpo. Os médicos tentaram, sem sucesso, salvar a vida de Andrea Amarante, 42 anos, durante uma semana. Ela morreu no domingo. Apenas a companheira de Amarante, Sofia Castro Riglos, 49 anos, ainda está viva.

A porta-voz da “Asamblea de Lesbianas de Barracas” denunciou que o crime foi agravado pelas condições precárias de alojamento das mulheres assassinadas. As quatro partilhavam um quarto sem banheiro, pelo qual pagaram 50.000 pesos (cerca de 50 dólares).

Crimes cometidos contra lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersexuais (LGBTI+) são classificados como crimes de ódio. “São motivados pelo ódio contra a orientação sexual das vítimas, que pertencem a um grupo estruturalmente violado e discriminado”, afirmou a Anistia Internacional em comunicado na segunda-feira. Crimes de ódio não podem ser tolerados por nós. Eles representam uma ameaça não apenas aos indivíduos e grupos diretamente afetados, mas também aos princípios fundamentais de justiça, igualdade e respeito mútuo em que uma sociedade democrática e civilizada deve se basear. Por isso, devemos nos posicionar individual e coletivamente contra esses atos.

O direito de amar e de existir livremente não pode ser negado a ninguém, independentemente da sua orientação sexual. As mulheres lésbicas enfrentam uma dupla discriminação, sujeitas não apenas ao sexismo arraigado em nossa sociedade, mas também à homofobia virulenta que persiste em muitos segmentos dela.

Sabemos que o dano causado a Sofia Castro Riglos é grave e, infelizmente, as vidas de Pamela Cobbas, Mercedes Roxana Figueroa e Andrea Amarante não serão recuperadas. Para que fatos assim não se repitam, precisam ser veemente repudiados e enfrentados. A impunidade só perpetua o ciclo de violência e instiga novos ataques. Devemos garantir que a justiça seja feita e que aqueles que cometem tais atos sejam responsabilizados perante a lei. Nesse sentido, o GT Filosofia e Gênero da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia - Anpof espera que a justiça argentina proceda a uma investigação exaustiva com uma perspectiva de gênero, que tenha em conta a identidade das vítimas e a motivação do ataque. Ao mesmo tempo, considera que é de responsabilidade do Estado garantir que as pessoas LGBTI+ possam viver livremente a sua identidade e sexualidade sem serem vítimas de violência.

É mister perceber que, paralelamente à imposição de uma política econômica de austeridade, tal como vem ocorrendo em territórios como a Argentina, em que a força da ultradireita internacional vem se ampliando e ganhando as massas descontentes com a perda do poder aquisitivo de seus salários, o desemprego estrutural, e, portanto, com a perda de horizonte de conquista de vida digna, dá-se necessariamente um processo de adoção do conservadorismo dos costumes. Esse conservadorismo visa afetar, sobretudo, as minorias sociais de gênero e raça, ao passo que a política econômica cuida da precarização do trabalho e da vulnerabilização da classe trabalhadora.

Políticas de austeridade econômica não só justificam, mas provocam o reaparecimento de tudo o que as autodenominadas democracias ocidentais fingem ter ultrapassado em termos civilizacionais. A esse cenário somam-se os novos mecanismos de vigilância possibilitados pelo avanço das tecnologias digitais da informação e redes sociais digitais, mecanismos transparentes por exibirem a fachada de “liberdade”. Mas de que liberdade estamos falando? Liberdade de opinar nas redes sociais mesmo sem saber do que se está falando?; liberdade de consumir produtos com os signos que revelam nossa bem-sucedida incorporação pela sociedade do consumo?; liberdade de submeter-se à lideranças autoritárias que prometem restaurar a ordem e os bons costumes com vistas à reafirmação de um nacionalismo chauvinista?; liberdade de aceitar a submissão à lideranças religiosas que fazem da fé um mercado?; liberdade de rasgar a Constituição Federal e pedir o retorno de um regime ditatorial?

Assim, de um lado, o poder econômico define o destino de trabalhadores e trabalhadoras e dos mais pobres. De outro lado, a biopolítica trata de mantê-los sob controle em sua própria individualidade e relação consigo mesmo. A consequência evidente é que recaem sobre as minorias étnicas, de gênero e de orientação sexual os mecanismos mais acirrados de vigilância e violência social. Como dizia Steve Biko, é na dimensão da identidade que a política de segregação começa seu trabalho. Impedir que um indivíduo se identifique com sua própria corporeidade é o primeiro passo para castrá-lo, dominá-lo.