Quem pode ser excelente?

Filipe Campello

26/06/2023 • Bolsas de produtividade em pesquisa do CNPq

O recente artigo sobre os critérios adotados na distribuição de bolsas de produtividade do CNPq, assinado conjuntamente pela atual diretoria da ANPOF, tornou público um debate que há tempos se ouvia nos corredores dos encontros nacionais de filosofia. O propósito de torná-lo mais transparente é, por si só, bem-vindo, sendo este fórum um espaço adequado para publicizar opiniões divergentes sobre o tema, qualificando o debate. 

Há algumas formas de avançar na discussão. Uma delas é no sentido de dedicar esforços às análises das estatísticas concernentes aos recortes regionais (apenas 6% dos bolsistas nível 1 — 5 de 81 — estão fora da região sul e sudeste), de gênero (como tem sido proposto pela Rede Brasileira de Mulheres Filósofas [1]) e de raça (dados ainda indisponíveis). Além desses recortes, dados especificamente concernentes à produção também seriam oportunos. Distorções nesses casos são conhecidas, onde se constata bolsistas sobretudo de nível 1 com produção tímida nos últimos 5 ou 10 anos. Esse aspecto da produção em particular já se mostrava como paradoxal nos próprios critérios de análise das propostas, uma vez que seu foco recaia sobre o projeto em si. Já nos últimos editais, tornou-se mais claro o peso dado à relevância e originalidade da contribuição do proponente ao longo da carreira, com ênfase na atividade recente (últimos 5 anos). Todos esses dados contribuem, enfim, para um panorama também mais transparente das concessões de financiamento à pesquisa no Brasil. 

Uma outra forma de continuar o diálogo com o texto refere-se a um problema filosófico (e ao mesmo tempo político) que se tornou recorrente nos departamentos de filosofia em vários países sobre o que, de fato, significa descolonizar instituições e suas práticas. E é sintomático que esse debate tem encontrado resistências por parte de nossa comunidade filosófica. Ao questionar os critérios utilizados para a concessão de bolsa, o texto interpõe, ao meu ver, duas dimensões do problema. Um primeiro aspecto refere-se ao “quem” do discurso: quem fala, representa, ocupa espaços. É o que Gayatri Spivak sugeria em seu influente ensaio “Pode o subalterno falar?”, quando distinguia entre dois sentidos que o verbo representar assume na língua alemã: por um lado, substituir, falando pelo outro (vertreten) e, por outro, exibir-se, falando por si (vorstellen). Como na história que Lélia Gonzalez conta, em Racismo e sexismo na cultura brasileira, do lançamento de um livro sobre negritude, definido por ela como um encontro de brancos para falar de negros. Tudo muito bem organizado de maneira que os negros foram convidados para ficar sentados ouvindo o que os brancos tinham a falar sobre eles. Até que alguém que deveria apenas permanecer como ouvinte pegou o microfone para reclamar e começou o fuzuê – um desconcerto naquela experiência aparentemente muito bem ordenada, mas que faz ver que, por trás da suposta normalidade, algo está fora de lugar [2].

O problema que se alerta nesses casos refere-se ao fato de que instituições, enquanto se inserem em relações historicamente excludente, acabam por reproduzir recortes estruturalmente desiguais. Mas isso não é apenas uma questão de representatividade. E aqui surge um segundo aspecto das críticas decoloniais frequentemente negligenciado. A importância de incluir narrativas que historicamente estiveram de fora das instituições de ensino e pesquisa não significa apenas dar espaço para que elas agora possam coexistir em meio às demais, senão que elas ressignificam e ampliam visões de mundo. Trata-se de confrontar noções assumidas como “universais” (ou, nesse caso, “excelentes”) apenas enquanto excluíam e silenciaram outras, no sentido que Sueli Carneiro chamou de epistemicídio, como já mencionado no artigo assinado pela diretoria da ANPOF [3].

No meu livro “Crítica dos afetos”, sugeri uma distinção entre duas dimensões de justiça (de algum modo, analítica, já que penso que elas são interligadas [4]). A questão em torno do reconhecimento de novas epistemologias refere-se a uma justiça de primeira ordem: para ampliar a esfera do discurso - do sensível e do dizível – primeiro precisamos reconhecer outras formas de ver e dizer o mundo em seu potencial de correção epistêmica. Isso vale inclusive - e aqui um modo mais sutil de silenciamento – em relação àquelas formas de produção baseadas na tradição oral: enquanto lhe são vetadas a própria possibilidade de disputa de espaço destinado à tradição escrita, elas historicamente sequer foram ouvidas pelas visões credenciadoras do que seria excelência filosófica. 

Quando voltamos hoje a filósofos como Kant ou Hegel, não significa apenas disputar leituras estruturais de seus textos, senão reconhecer que quando eles estão olhando para fora da Europa, sobretudo para o continente africano e povos ameríndios, não estão “estruturalmente” interessados em saber o que, de fato, essas pessoas pensavam. Uma história mundial só é possível construir sob a ótica de adoção de um centro que se outorga a propriedade de falar pelo outro. O interesse em torno de outras visões de mundo se limita ao campo do excêntrico, uma vez que tais discursos permanecem periféricos, fora do centro da razão. Daí não se precisou de muito esforço para justificar projetos coloniais e escravistas enquanto contribuiriam para levar a maioridade da razão a esses povos. 

É por isso que é equivocado tomar o discurso decolonial como se ele se reduzisse a relatos e experiências particulares. Contribuições como as de Frantz Fanon ou Grada Kilomba já insistiam no inverso: o problema de uma “injustiça epistêmica” é justamente tomar esses discursos apenas como particular, emotivo e irracional – ou seja, como discursos que continuam se referindo a suas próprias experiências, sem que que nunca possam falar em nome do “universal” ou da “razão” [5]. A luta por reconhecimento desses discursos consiste, pelo contrário, nos possíveis ganhos teóricos que transcendem a particularidade de suas narrativas. É isso que faz com que algo como um pensamento filosófico brasileiro (e que melhor deveria se conjugar no plural) não seja apenas reconhecido como apenas falando sobre o Brasil, mas a partir dele. São expectativas enviesadas como essa que acabam por se produzir internamente, quando se espera que o pensamento (assim como a arte) produzida no nordeste seja apenas regional. Do mesmo modo, contribuições epistêmicas de povos amazônicos não precisam se contrapor a conceitos da modernidade porque já falam de um registro que não precisa ser reconhecido como antimoderno. Eles não falam apenas sobre a Amazônia, mas da Amazônia para o mundo, assim como a filosofia feita na Alemanha ou na França não se pensava a si mesma como falando apenas sobre o contexto particular alemão ou francês [6]. 

É nesse sentido que contribuições como as de Ailton Krenak ou do Xamã Yanomami David Kopenawa não são apenas de interesse antropológico, mas devem valer como novos conceitos e ideias, que podem, aliás, oferecer um importante vocabulário epistêmico, como diz Ailton Krenak, para “adiar o fim do mundo”. Como já se perguntou o antropólogo Peter Skafish na introdução à versão inglesa de Metafísicas Canibais, de Eduardo Viveiros de Castro: “Pode a antropologia ser filosofia? Pode ela não apenas contribuir, mas fazer e até mesmo auxiliar na reinvenção da filosofia, no sentido de uma metafísica construtiva e especulativa? E, nesse caso, o que seria a filosofia, já que a maioria de suas melhores instâncias começa, termina e nunca abandona categorias ocidentais? [7]”

Críticas decoloniais convidam a uma mudança radical de perspectiva que não se reduz a uma questão de representatividade. Não basta apenas incluir, se essas perspectivas não transformam nosso campo do visível, vocabulários, formas de ver o mundo, e o que de fato pode ser candidato à excelência. Sem o entrelaçamento entre “quem” e “o quê” pouco podemos avançar: ou apenas se inclui, mantendo os mesmos discursos, ou mudam os discursos, mantendo as mesmas pessoas.  Muito do que se vê em instituições europeias que surfam no hype decolonial mostra esses impasses, agregando valor aos seus projetos com interesses no “decolonial money” ao mesmo tempo que continuam lidando com a descolonização do conhecimento sob uma ótica fetichizante que beira o exotismo. Instituições brasileiras tampouco são imunes a reproduzir essas mesmas contradições, correndo o risco de apenas passar um verniz decolonial em estruturas persistentemente coloniais. 

Isso não quer dizer que todo e qualquer ponto de vista (ou, no caso específico da distribuição de bolsas, qualquer projeto de pesquisa) são excelentes - e isso vale tanto para projetos sobre o conceito de perspectivismo ameríndio ou sobre o Juízo de gosto de Kant, o conceito de natureza em Aristóteles ou no campo da inteligência artificial. Ampliar tampouco significa que precisamos destruir as estátuas dos filósofos e jogá-las no rio. Nisso, o enfrentamento crítico é sempre mais produtivo e menos perigoso do que o cancelamento. Como na imagem que o esteta Arthur Danto usa no âmbito da arte: incluir novos objetos – indiscerníveis do ponto de vista estético – que passam a reivindicar o estatuto de arte não significa que precisamos retirar do museu o que até hoje foi visto como obra de arte [8].

Não penso que o que está em jogo seja excluir um horizonte de excelência, senão pautar um debate sobre quem historicamente definiu quais cânones e quais epistemologias mereceriam ser credenciadas como excelentes. Muito do que se produziu em nome dessa excelência foi possível somente a partir de um recorte epistemicamente injusto, tanto no que se refere a quem tem autoridade de credenciar como quais discursos podem reivindicar o estatuto de credenciado. Não se trata, portanto, de abdicar de critérios de julgamento sobre a qualidade da pesquisa. 

O ponto é que historicamente determinados projetos sequer puderam disputar esse espaço porque de antemão estavam vetados daquilo que seria reconhecido como excelência filosófica. E aqui é onde entra uma segunda ordem no campo da crítica e das justificações, onde ao meu ver não precisamos abdicar das possibilidades de encontrarmos horizontes comuns de comunicabilidade e partilha. Essa segunda ordem poderá ser mais justa se garantimos as condições políticas para que discursos historicamente silenciados possam adentrar a esfera do visível também sob a ótica do reconhecimento de instituições de financiamento à pesquisa. 

A iniciativa de trazer essas questões que envolvem também os critérios de financiamento é, portanto, bem-vinda enquanto convida a uma autocrítica sincera sobre lógicas de manutenção de privilégio e poder. Abre-se, com isso, a possibilidade de políticas institucionais que, ao invés de reproduzir a concentração de recursos, permite fomentar e capacitar lugares e pessoas com grande potencial de pesquisa, onde a escassez de recursos, no entanto, inibe viciosamente a produção intelectual. 

A comunidade filosófica brasileira tem autonomia e maturidade para avançar nos modos de entender a pesquisa filosófica, como já é possível atestar em importantes e reconhecidas contribuições em temas fronteiriços da filosofia. Ampliar os campos de pesquisa, fomentando aquilo que a produção filosófica brasileira pode contribuir seja em nível nacional como internacional, significa dar condições para que nossas pesquisas deixem de ser vistas como periféricas e excêntricas, e consolidem cada vez mais sua excelência.

Filipe Campello é professor de filosofia da Universidade Federal de Pernambuco e coordenador do Núcleo de Estudos em Ética e Política (NEFIPE-UFPE). Doutor em filosofia pela Universidade de Frankfurt, foi pesquisador visitante na New School for Social Research (Nova York), Bergen, Perugia e atualmente é Senior Fellow no Centre for Global Cooperation Research/Universität Duisburg-Essen.

[1] https://www.filosofas.org/quantas

[2] GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: LIMA, M; RIOS, F. (Eds.). Por um feminismo afro-latino-americano. São Paulo: Zahar, 2020, p. 75.

[3]https://www.geledes.org.br/epistemicidio/?gclid=Cj0KCQjwpPKiBhDvARIsACn-gzCJ2vWDJl-88KVDXJIJRvVLQYogBp3S9BHCp6c34VxnaUBWajG34YkaAoLDEALw_wcB

[4] CAMPELLO, Filipe. Crítica dos afetos. Belo Horizonte: Autêntica, 2022.

[5] KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. “Como acadêmica, por exemplo, é comum dizerem que meu trabalho acerca do racismo cotidiano é muito interessante, porém não muito científico.
Tal observação ilustra a ordem colonial na qual intelectuais negras/os residem: “Você tem uma perspectiva demasiado subjetiva”, “muito
pessoal”; “muito emocional”; “muito específica”; “Esses são fatos objetivos?”. Tais comentários funcionam como uma máscara que silencia nossas vozes assim que falamos. Eles permitem que o sujeito branco posicione nossos discursos de volta nas margens, como conhecimento desviante, enquanto seus discursos se conservam no centro, como a norma. Quando elas/ eles falam é científico, quando nós falamos é acientífico. universal / específico; objetivo / subjetivo; neutro / pessoal; racional / emocional; imparcial / parcial; elas/eles têm fatos / nós temos opiniões; elas/eles têm conhecimento / nós temos experiências. Essas não são simples categorizações semânticas; elas possuem uma dimensão de poder que mantém posições hierárquicas e preservam a supremacia branca. Não estamos lidando aqui com uma “coexistência pacífica de palavras”, como Jacques Derrida (1981, p. 41) enfatiza, mas sim com uma hierarquia violenta que determina quem pode falar. (p. 51-52)

[6] Penso ainda que essa postura leva a estimular ao invés de desencorajar pesquisas que pretendem ser mais autorais, no sentido desenvolver novas ideias ou mesmo novas teorias, sem necessariamente ter que repetir a fórmula “Sobre o conceito x no filosófo y”. Para mencionar um contraponto com outro modelo dito de excelência, os estudantes de filosofia de Harvard recebem, logo ao ingressarem no curso, um manual que os orienta a escrever em primeira pessoa do singular.

[7] Skafish, Peter. Introduction. In: Viveiros de Castro, Eduardo. Cannibal Metaphysics. Minneapolis: Univocal Publishing, 2014,  p. 9. Nesse sentido, escreve o próprio Viveiros de Castro: “Se a questão é saber o que importa na avaliação de uma filosofia – sua capacidade de criar novos conceitos –, então a antropologia, sem pretender substituir a filosofia, não deixa de ser um poderoso instrumento filosófico, capaz de ampliar um pouco os horizontes ainda excessivamente etnocêntricos de “nossa” filosofia, e de nos livrar, de passagem, da antropologia dita “filosófica”. Uma filosofia com outra gente e outros povos dentro, então: a possibilidade de uma atividade filosófica que mantenha uma relação com a “não-filosofia” – a vida – de outros povos do planeta, além de com a nossa própria. Os povos “incomuns”, portanto, aqueles que se acham fora de nossa esfera de comunicação”. (Viveiros de Castro, E. Metafísicas canibais. São Paulo: Ubu, 2018, p. 224.)

[8]  “Como um resultado da aceitação da nova teoria, não apenas as pinturas pós-impressionistas foram aceitas como arte, mas vários objetos (máscaras, armas etc.) foram transferidos de museus antropológicos (e outros lugares heterogêneos) para musées des beaux arts, embora, como poderíamos esperar do fato de que um critério para a aceitação de uma nova teoria é que ela dê conta  de  qualquer  coisa  que  a  antiga  dava,  nada  tenha  tido  que ser retirado do musée des beaux arts – mesmo que tenha havido rearranjos internos como os entre salas de acervo e espaços de exibição” (Danto, Arthur. O mundo da arte. Artefilosofia, Ouro Preto, n.1, p.13-25, jul. 2006, p.15)