Filosofia do ensino de filosofia: por uma cidadania-filosófica

Augusto Rodrigues

22/10/2021 • Cânone - uma proposta de debate

Por Rodrigo Gelamo & Augusto Rodrigues (UNESP; GT Filosofar e Ensinar a Filosofar)

O ensino de filosofia, seja na universidade, na educação básica ou mesmo em espaços não formais, não costuma estar listado entre as pesquisas desenvolvidas no âmbito da filosofia acadêmica brasileira. São raros os programas de pós-graduação em filosofia que acolhem, em suas linhas de pesquisa, projetos que problematizam filosoficamente as experiências, as relações e as práticas de ensinar e aprender filosofia. 

É bem verdade que, recentemente, a criação de dois mestrados profissionalizantes, PROF-FILO e do PPFEN (Programa de Pós-graduação em Filosofia e Ensino), alterou um pouco este cenário, permitindo que muitos professores de filosofia, que desejavam fazer o mestrado em filosofia, o fizessem. No entanto, aqueles que, por um lado, desejam cursar mestrado e doutorado acadêmico nesse tema, e por outro, os pesquisadores que querem um lugar institucional para desenvolver suas pesquisas em torno do ensino de filosofia, precisam buscar programas de pós-graduação em outras áreas, ou ainda moldarem seus projetos de tal modo a se adequarem às linhas de pesquisa já consolidadas nos programas de filosofia.

Assim, o entre-lugares se revela, se não a principal, uma das características da produção acadêmica do ensino de filosofia no Brasil. Isso porque, historicamente, ela se formou entre as frestas institucionais acadêmicas das áreas de filosofia e de educação. Quem primeiro acolheu as demandas de pesquisa sobre o tema, e continua a ser uma grande aliada, foi a filosofia da educação. Em diferentes circunstâncias históricas, seja no período da redemocratização e da defesa de uma educação crítica filosófica, seja diante da indefinição do lugar da disciplina de filosofia na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, seja ainda depois do retorno obrigatório da filosofia à educação básica em 2008, a filosofia da educação atendeu às demandas por pesquisas em torno do ensino de filosofia e as incentivou. Isso possibilitou que as inquietações com a filosofia e seu ensino se transformassem em pesquisa acadêmica, formando novos quadros de pesquisadores, para os quais o ensino de filosofia se tornou a problemática central e não apenas uma produção colateral, efeito das discussões momentâneas. Por sua vez, mesmo que não houvesse muita abertura dos programas de pós-graduação acadêmicos em filosofia para o ensino de filosofia, foi possível forçar as possibilidades institucionais e se infiltrar nas frestas deixadas na área de teoria do conhecimento, ética, estética, política e até história da filosofia, desenvolvendo, em um plano periférico, a temática. Até porque, ao contrário do que muitas vezes é pressuposto, as tensões que irrompem da pesquisa com o ensino de filosofia encontram seu apoio, principalmente, na própria tradição filosófica e, por conseguinte, ressoam as problemáticas típicas da área da filosofia. 

Talvez esteja na hora de nos indagarmos, primeiramente, se aqueles que desejam pesquisar filosoficamente o ensino de filosofia precisam continuar a se adequar às frestas dos campos acadêmicos consolidados em cenário nacional e, se sim, por que isso ainda acontece. O contexto desse questionamento encontra suas razões de ser na percepção sobre o ensino de filosofia como um campo de conhecimento. Depois de décadas entre áreas, questionamo-nos se as pesquisas com o ensino de filosofia já não teceram os contornos epistêmicos específicos, alcançando uma produção acadêmica significativa, novos quadros de pesquisadores e mecanismo próprios de divulgação científica, de modo a criar um campo de conhecimento profissional autônomo, cujas produções se dão mais em convivência central com pesquisadores do ensino de filosofia do que com as pesquisas propriamente de filosofia da educação, como uma linha dentro do campo educacional, e filosofia, em seu aspecto mais tradicional de investigação. 

Recentemente, esse debate adquiriu força com as pesquisas da filósofa Patrícia Velasco. A partir de uma análise comparativa da produção acadêmica de duas décadas dos integrantes do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar – de 1997-2007, 2008-2018 –, Velasco (2020) afirma que houve um crescimento significativo e sintomático – cujos detalhes foram reapresentados pela autora nesse fórum. Na última década, os núcleos formativos se diversificaram e a temática deixou de ser objeto concentrado nas mãos de poucos pesquisadores, proporcionando à discussão brasileira uma rica diversidade cultural e conceitual. São desenvolvidos mais projetos de pesquisa e de extensão, e são publicados mais artigos, capítulos de coletâneas e livros, como também o ensino de filosofia passa a ser um tema de pesquisa mais recorrente nos programas de pós-graduação, seja na Educação ou em Filosofia, e nos trabalhos de conclusão de cursos. Talvez um exemplo paradigmático da relevância atual do ensino de filosofia no contexto brasileiro de pesquisa filosófica seja o XVIII Encontro da ANPOF, realizado em Vitória, no Espírito Santo, em que “cerca de 10% dos trabalhos diziam respeito à temática em questão” (VELASCO, 2020, p. 19). 

Mesmo que seu olhar esteja circunscrito ao GT, sua análise não deixa de ser relevante à pesquisa com o ensino de filosofia no Brasil, uma vez que este corresponde ao núcleo que concentra os pesquisadores e seus grupos que, a partir das diferentes regiões do país, assumem, sistematicamente, a responsabilidade filosófica pela temática. Desde a sua primeira reunião em 2006, a proposta do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar era constituir-se como local propício à concentração de pesquisadores do ensino de filosofia, a fim de que as produções ganhassem organicidade e, consequentemente, potência expansiva em território nacional. E parece que isso se tornou realidade, uma vez que o GT permanece um ponto estratégico para incluir e fortalecer as relações entre filosofia e ensino no registro das pesquisas filosóficas brasileiras. 

Vale dizer que, para tanto, algumas condições contextuais brasileiras foram também cruciais. Nos últimos anos, tivemos o retorno obrigatório da filosofia à grade curricular da educação básica e o aparecimento de programas de aperfeiçoamento e valorização da formação de professores são fatores relevantes para despertar interesse acadêmico à área. Não podemos esquecer também que, com a criação recente de dois mestrados profissionais na área, somada à organização periódica de eventos nacionais, de coleções, dossiês e à criação de revistas – Revista NESEF Filosofia e Ensino (UFPR), Revista Digital de Ensino de Filosofia (UFSM) e a Revista Estudos de Filosofia e Ensino (CEFET- RJ) – há, atualmente, mais condições institucionais que impulsionam e acolhem as produções. Porém, dentre todo esse contexto, é difícil ignorar o papel fundamental dos integrantes do GT. São seus membros que, em muitos dos casos, estão envolvidos na criação das novas revistas, na luta pelo PROF-FILO, na organização de dossiês e nos muitos eventos nacionais na área. Portanto, se o contexto é importante para esses inúmeros acontecimentos históricos que envolvem o “Ensino de Filosofia”, um campo de conhecimento não se faz sem a participação e o investimento vital direto dos agentes que o constituem. É a presença direta e indireta dos integrantes do GT e/ou de pesquisadores que foram formados pelos seus membros que nos permite dizer que, tal como acontece aos diferentes objetos e práticas com a filosofia acadêmica – filosofia política, filosofia moral, filosofia da lógica, filosofia da linguagem, filosofia da arte, etc. –, cria-se uma filosofia do ensino de filosofia (VELASCO, 2019, p. 79-80), um campo de conhecimento inerente à área da filosofia brasileira. 

Afinal, o que seria uma Filosofia do ensino de filosofia? Este conceito, apesar de consonante com outros campos da filosofia como bem explicitou Velasco (2019), é histórico para o ensino de filosofia no Brasil, pois marca um movimento político-filosófico de professores de filosofia que desenvolveram as questões da filosofia e seu ensino como um problema genuinamente filosófico. De tanto terem habitado as frestas, de terem ocupado os terrenos concedidos, os diferentes grupos de pesquisa do ensino de filosofia, impulsionados por essa política-filosófica, conseguiram forçar e alargar os limites epistêmicos, éticos, estéticos e políticos da filosofia acadêmica brasileira. Utilizando o GT Filosofar e ensinar a filosofar como núcleo agenciador, criou-se um espaço para a realização de pesquisa filosófica que territorializa, dentro da própria comunidade acadêmica filosófica, novos conteúdos, objetos e problemáticas. Apropriou-se das ferramentas da filosofia, obviamente que em consórcio, em transversalidade com a educação e outras áreas, para poder pensar com profundidade as questões relacionadas com o ensino de filosofia. 

Aqui temos de, talvez, ensaiar uma resposta às questões colocadas anteriormente. Se na contemporaneidade o tema ensino de filosofia foi elevado ao estatuto de pesquisa filosófica, não temos ainda o alargamento institucional acadêmico suficiente que dê maiores condições para sua consolidação e expansão como campo de conhecimento em cenário nacional. Ou seja, ainda temos que habitar as frestas institucionais, caso queiramos ter como objeto principal de pesquisa o ensino de filosofia. Porém, precisamos questionar os porquês de as pesquisas com o ensino de filosofia, apesar de terem um GT dentro da ANPOF e de sempre ocuparem uma parte significativa desse encontro nacional, não encontram espaço institucional nas linhas de pesquisa dos programas de pós-graduação de filosofia brasileiros e, tampouco, são reconhecidas como uma subárea de pesquisa pelas agências de fomento nacionais. Teria sido o espaço concedido, naquela associação, apenas uma estratégia oportuna ao momento histórico que vivia a temática com a iminência do retorno da filosofia à escola, ou acreditou-se em um projeto de constituição e desenvolvimento de um campo, que hoje parece realidade? Sublinhar essa conjuntura é colocar em debate uma luta pelo esgarçamento dos limites-identitários institucionais postos pela filosofia acadêmica aos contornos do campo filosofia no Brasil, dentro dos quais se disputa cidadania-filosófica em editais, financiamentos, acolhimento e alocação do que já se desenvolve fora dela. O que se reivindica é uma cidadania-filosófica aos pesquisadores para que suas pesquisas e projetos, que já assumem há algumas décadas o ensino de filosofia como um problema genuíno do campo da filosofia acadêmica, possam ser reconhecidos como tal e figurar como área nas agências de fomento e de avaliação.

Não se trata, no entanto, de defender a aquisição de um passaporte para que o ensino de filosofia se torne uma questão canônica, operada segundo os limites e os registros tradicionalmente postos pela filosofia acadêmica. Desde a emergência coletiva de um projeto de campo para o ensino de filosofia, isto é, da filosofia do ensino de filosofia em cenário nacional, a defesa de uma cidadania-filosófica à temática e seus pesquisadores implica uma participação e disputa pelo comum da filosofia universitária, o que inclui não só as questões de financiamento para desenvolvimento das pesquisas, mas também o questionamento dos pressupostos e práticas hegemônicas que qualificam a legitimidade do que é ou não filosófico. 

Nesse ponto, um dos pressupostos comumente questionados dentro do campo filosofia do ensino de filosofia, por exemplo, é a separação histórica universitária entre ensinar e fazer filosofia, que serve para ofuscar os aspectos educacionais da filosofia, aspectos esses que, com a emergência desse novo campo, ganham uma nova dimensão na atualidade. Querendo ou não, são os filósofos que se dedicam ao ensino que, geralmente, lutam pelos cursos de licenciatura e também por inventar novos espaços para democratizar a experiência filosófica para além dos muros universitários. São esses pesquisadores que assumem um compromisso com a filosofia brasileira de tal forma que as salas de aulas, ou espaços educacionais, sejam também espaço por excelência da prática filosófica e os professores e estudantes possam, dentro dos papéis educacionais, experimentarem a filosofia. Principalmente no momento de incertezas diante da BNCC e dos ataques às ciências humanas, não será estratégico garantir cidadania-filosófica para esse campo em emergência? 

Que utilizemos, portanto, da filosofia para pensar os nossos próprios pressupostos, no caso, aqueles que fornecem uma identidade para nossa filosofia acadêmica ou que, ao contrário, não nos outorgam o direito de exercermos nossa plena cidadania de pesquisadores em filosofia.

 

Referências

VELASCO, Patrícia Del Nero. Filosofar e Ensinar a Filosofar: registros do GT da ANPOF – 2006-2018. Rio de Janeiro: NEFI Edições, 2020a. – (coleçõeS; 4)

VELASCO, Patrícia Del Nero. O que é isto – o PROF-FILO? O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v. 28, n. 44, p. 76-107, jan.-jun. 2019