Os cursos de "filosofia" no Brasil são ocidentocêntricos, falocêntricos e têm medo do caos

Adilbênia Freire Machado

06/12/2023 • Currículo e excelência na área de filosofia

Esses dias comecei a ler “Descolonizando afetos: experimentações sobre outras formas de amar” da Ativista Indígena Guarani Geni Núñez. Ela começa o texto dialogando com Frantz Fanon, ao afirmar que “a descolonização pode ser sentida como uma desordem, um caos, porque a ordem e a normalidade são as características da colonização, de modo que a descolonização, quando se efetiva, produz justamente desordem absoluta”. Logo pensei: a filosofia ocidental moderna tem medo de gente que sente, que dança, que se expressa, que sente o chão, que sente a vida, que sente para viver... portanto, tem medo do caos, porque o caos é criativo, mexe nas estruturas, questiona, se impõe, necessita sentir o chão, talvez ser chão, também. O caos cria, recria, co-cria, gesta... Inclusive é importante compreendermos que “quando pensamos em algo novo, ou estranho, e, inquietante, muitas vezes esquecemos que há determinadas sensações de estranhamento que não vêm de algo que é inédito, mas justamente do que nos é familiar de alguma forma ainda não elaborada” (ibid).

Tenho dito frequentemente que os cursos de filosofia no Brasil estão implicados em uma (de)formação ocidentocêntrica, ou seja, nossos cursos são monorreferenciados e, assim, tecidos em filosofias que não partem do nosso chão geográfico, geopolítico, geocultural, do nosso chão do sentir / ser / viver. Nossos cursos também são marcados por um movimento falocêntrico, onde preponderam homens brancos e suas estruturas engessadas de poder, por isso temem tanto o caos e impõem o uno, o único, sua supremacia sobre as mulheres (como se isso fosse possível, já que são as mulheres que gestam os homens, tecendo ciclos de permanente vida); e sua superioridade em relação aos “não brancos”. São homens brancos, europeus, cristãos, heteronormativos, ricos protegendo suas classes, seus privilégios, suas culturas, hierarquizando, excluindo, matando...

 Esse movimento implica o epistemicídio contínuo de muitas culturas e suas formas de pensar, de criar, de produzir, de sentir, de ser e estar no mundo. Implica a morte física, assim como a utilização de um modelo acadêmico que não dialoga com nossas experiências, impondo um modo de pensar, de ser e estar no mundo que nos exclui de formas diversas. Imposição de um cânone demasiadamente distante da nossa realidade, localizado em outro continente, justamente o continente que nos colonizou. A verdade é que “nossas” universidades ocidentalizadas não foram criadas para nos beneficiar, ou seja, beneficiar quem foi colonizado, beneficiar a classe trabalhadora, as mulheres (as negras e indígenas sofrem duplamente, por serem mulheres e por serem negras e indígenas). 

Portanto, precisamos reivindicar, reconhecer, produzir nossa(s) própria(s) filosofia(s), mediadas pelo pretuguês, como nos ensina Lélia Gonzalez, pois nossos modos de sentir/ser/estar no mundo, pensar o mundo é perpassado pelas culturas africanas com seus valores e filosofias. Nesse sentido, penso o pretuguês atravessado pelas formas de sentir/ser/estar no mundo tecidas pelo pensamento afrorreferenciado que tem a ancestralidade como chão, como movimento de enraizamento e pertencimento. Assim, os povos africanos e indígenas que alicerçaram esse país alicerçam nosso(s) pensamento(s), as epistemologias fundantes do pensamento social brasileiro! E mais, pensamento tecido por vozes mulheres das mães pretas, das nossas mais velhas que transmitiam, e seguem transmitindo, histórias de suas origens africanas, suas formas de ser / estar / pensar o mundo, no mundo!

Viver mediadas por um pensamento eurocentrado, ocidentocêntrico é continuar em um movimento de submissão à opressão, à alienação, ao não pertencimento, não se compreendendo como seres que podem e devem efetivar movimentos de emancipação, de autonomia, de libertação, de descolonização, de contracolonização, como nos ensina o Mestre Nego Bispo, Antônio Bispo dos Santos.

Comumente quando reivindico que nossos cursos de filosofia, no Brasil, devem trazer a pluralidade de vozes que implica a existência nesse mundo, reivindicando principalmente as filosofias africanas, indígenas, afrorreferenciadas, alguém (geralmente pessoas brancas) afirma que se deva pensar, também, nas filosofias orientais, asiáticas, etc. Sempre respondo que ao reivindicar que nossos cursos de filosofia representem o que é a filosofia, pensando-a enquanto pluralidade, pluriversalidade, não estou negando essas filosofias, mas apontando as filosofias africanas, indígenas, ou seja, afrorreferenciadas, assim como as latino-americanas, como fundantes, pois nosso país é fundamentalmente tecido desde/com culturas indígenas e africanas e estamos localizado na América Latina. Assim, nos interessa que todas as filosofias estejam presentes em nossos currículos e o reconhecimento, valorização e potencialização das filosofias originárias desse país.

Precisamos descolonizar, contracolonizar, desaprender a falta de originalidade e aprender a termos autonomia para pensar, para filosofar, para criar, para sentir, para ser... É preciso filosofar desde o próprio chão, em um movimento contínuo de enraizamento e pertencimento... filosofar é movimento contínuo de invenção, de criação, de re-criação, do gestar, do co-criar! Filosofia é movimento próprio do caos! 

Portanto, ao reivindicarmos a presença da pluriversidade filosófica em nossos currículos, das filosofias do nosso chão é porque temos um projeto de transformação da nossa sociedade em um movimento contínuo de libertação, de emancipação, de autonomia, um movimento contínuo para construção de uma educação antirracista, antissexista, inclusiva, contracolonial, assim, de filosofias do ser-tão, do ser chão, do ser, do pertenSer! Filosofar para formar pessoas encantadas, ou seja, implicadas com a vida, com todas elas!

As filosofias africanas, afrorreferenciadas estão implicadas com o encantamento da vida, do viver, do sentir / ser / estar no mundo e com o mundo!