Apresentação do Dossiê "Educação, produção de subjetividade e cuidado de si: a atualidade de A hermenêutica do sujeito"

v.36 n.78 set./dez. 2022 • Educação e Filosofia

Autor: Sílvio Gallo; Alexandre Filordi de Carvalho

Resumo:

Entre 06 de janeiro e 24 de março de 1982, as aulas de Michel Foucault no Collège de France giraram em torno do que ele definiu como uma “hermenêutica do sujeito”. No resumo preparado para o Annuaire du Collège de France ele assim indicava: “o curso deste ano foi consagrado à formação do tema da hermenêutica de si. Tratava-se de estudá-lo não apenas em suas formulações teóricas, mas de analisá-lo em relação a um conjunto de práticas que tiveram uma grande importância na Antiguidade clássica ou tardia” (Foucault, 2004, p. 597). Como se sabe, o curso foi dedicado ao estudo da noção grega de epiméleia heautoû, que os latinos denominaram cura sui e que Foucault denominou, em francês, souci de soi. Em português, desde a primeira tradução do volume III da História da Sexualidade, convencionou-se traduzir por cuidado de si. Outra noção que aparece nas aulas de 10 de fevereiro e de 10 de março é a de parrhesía, que seria estudada a fundo nos cursos seguintes, em 1983 e 1984.

Frédéric Gros, responsável por estabelecer a edição de A hermenêutica do sujeito, comentou sobre a ambiguidade deste curso, que o tornou singular na trajetória do filósofo. Depois dos cursos centrados na análise da biopolítica, até 1979, Foucault, em 1980, estudou a problemática da confissão como técnica de si entre os primeiros cristãos (O governo dos vivos) e, em 1981, no curso Subjetividade e verdade, a questão dos prazeres na Antiguidade greco-romana. Enquanto o material estudado no curso de 1980 apareceria como fonte central no volume IV da História da Sexualidade (que só seria publicado em 2018), a temática do curso de 1981 estaria presente no seu volume III (O cuidado de si), que logrou ser publicado às vésperas da morte de Foucault, em 1984. Segundo Gros (2004, p. 614), “o curso de 1982 tem como referência básica exatamente o mesmo período histórico que o curso do ano precedente, porém, com um novo quadro teórico, o das práticas de si”. Neste curso, a atenção voltou-se para o cuidado de si; a parresia, que já despontava ali, seria analisada a fundo nos cursos seguintes.

Com relação ao comentário de Gros, precisamos, porém, atentar para um detalhe. Ainda que o estudo das técnicas de si não tivesse sido central no curso de 1981, ele aparece com destaque no quadro dos estudos de Foucault já em 1980. Após ministrar suas aulas no Collège de France entre janeiro e março estudando as técnicas de si entre os primeiros cristãos, além das conferências e dos debates realizados nos Estados Unidos nos meses de outubro e de novembro, o tema das técnicas de si passou a ser central. Curiosamente, duas conferências realizadas no Dartmouth College em Hanover, New Hampshire, tiveram por título Truth and Subjectivity (Verdade e Subjetividade) e Christianity and Confession (Cristianismo e Confissão). Em Berkeley, na Universidade da Califórnia, no mesmo período, Foucault fez duas conferências no quadro das Howison Lectures, com praticamente o mesmo conteúdo, com o título geral de Subjetivity and Truth.  Percebe-se que nestes trabalhos nos Estados Unidos realizados entre os cursos na França de 1980 e 1981 o filósofo abordou os mesmos temas já trabalhados no início do ano e que seriam reforçados logo depois, no início do ano seguinte.

Os textos das conferências estadunidenses, preparados originariamente em inglês, só seriam publicados em francês em 2013, sob o título muito apropriado de L’origine de l’herméneutique de soi (A origem da hermenêutica de si, fazendo alusão àquele que viria a ser o título do curso de 1982). Nas conferências de Berkeley e Hanover, Foucault (2013, p. 37 e ss.) faz referência aos três tipos de técnicas estabelecidas por Habermas, a saber: técnicas de produção; técnicas de comunicação; e técnicas de poder, propondo introduzir um quarto tipo, as técnicas de si, assim caracterizadas:

[...] técnicas que permitem aos indivíduos efetuar, por eles mesmos, um certo número de operações sobre os próprios corpos, sobre as próprias almas, sobre os próprios pensamentos, sobre a própria conduta, e isso de maneira a transforam-se eles mesmo, modificarem-se eles mesmos e esperar um certo estado de perfeição, de felicidade, de pureza, de poder sobrenatural etc. Chamemos este tipo de técnicas como “técnicas de si” ou “tecnologia de si. (Foucault, 2013, p. 38)

Vemos, então, que o problema das técnicas de si estava presente no horizonte investigativo de Foucault pelo menos desde 1980, de modo que pensamos ser apropriado dizer que esta problemática marcou seu trabalho nos anos finais de sua vida. Em um debate realizado na Universidade da Califórnia em Berkeley, no dia 23 de outubro de 1980, encontramos outra pista importante para bem compreendermos as explorações teórico-conceituais do filósofo nesta época. Respondendo a uma pergunta, ele explica o que entende por “si”, quando fala em técnicas de si ou cuidado de si, por exemplo:

Como vocês sabem, não temos [o equivalente da] palavra “self” em francês; é uma pena, porque penso ser uma boa palavra. Em francês, temos duas palavras, “sujeito” e “subjetividade”, e não sei se vocês usam com frequência “subjetividade”, penso que não. Vejam: por “si” eu entendo o tipo de relação que o ser humano enquanto sujeito pode ter e nutrir com ele mesmo. Por exemplo, o ser humano pode ser, na cidade, um sujeito político. Sujeito político, isso quer dizer que ele pode votar, ou que ele pode ser explorado pelos outros etc. O si seria o tipo de relação que este ser humano enquanto sujeito tem com ele mesmo numa relação política. Podemos chamar isso de “subjetividade” em francês, mas não é satisfatório, eu penso que “si” é melhor. E este tipo de relação do sujeito consigo mesmo é, eu creio, o alvo das técnicas... (Foucault, 2013, p. 131).

Com as técnicas de si, articuladas com as técnicas de poder, de comunicação e de produção, Foucault introduz toda uma nova dimensão para se pensar o sujeito. Se o sujeito é um efeito das relações de poder, se está sempre assujeitado pela relação com os outros, ele pode também agir sobre si mesmo, transformando-se. Se, como vemos no trecho citado acima, o sujeito político, que está sujeitado ao contexto político e por isso pode agir politicamente, estabelecer uma relação consigo mesmo, também podemos pensar este tipo de relação com os sujeitos da educação, professores e estudantes. Se em Vigiar e Punir Foucault desvendou os meandros da escola como instituição disciplinar, como instrumento de sujeição dos indivíduos pela disciplina, pode-se pensar que o mesmo sujeito da disciplina é capaz de agir sobre si mesmo, transformando-se. E só é capaz de fazer isso justamente por estar sujeitado aos jogos disciplinares, o que abre um novo horizonte para o trabalho educativo e o para o pensar educacional, por exemplo, como heterotopia (Gallo, 2015). O que vemos na Hermenêutica do sujeito, também, é a exploração de Foucault em torno do que poderia ser uma “psicagogia”, isto é, uma condução da alma, uma condução de si mesmo, aos moldes daquilo que é, na pedagogia, uma condução a um dado saber.

Pensando nos horizontes que este curso abriu para novas dimensões do pensamento educacional, convidamos pesquisadores brasileiros e estrangeiros para se debruçar por diferentes aspectos desta perspectiva, compondo o leque amplo e diverso de artigos que apresentamos a seguir, neste dossiê composto por 11 artigos de 19 autoras e autores. Afinal de contas, 40 anos após a realização de A hermenêutica do sujeito, sua fortuna crítica pode ser ampliada de maneira indelével para a relação pensamento foucaultiano e educação.

Abrimos o dossiê com o artigo Tessituras: entre A Hermenêutica do Sujeito e a Educação, de autoria de Maura Corcini Lopes e Alfredo Veiga Neto, que se propõe a estabelecer conexões entre as temáticas abordadas no curso de Foucault com o campo educativo. Os autores ensaiam uma interessante diferenciação entre pedagogia e Pedagogia, de modo a destacar a função subjetivante da educação escolar, além de discutir a inversão moderna entre o cuidar de si e o conhecer a si mesmo, analisada por Foucault, com seus efeitos na educação.

O fluxo segue com Por uma semiologia prazerosa de A Hermenêutica do Sujeito, de Alexandre Freitas e Adalgisa Ferreira. Neste artigo, os autores se valem da semiologia inspirada em Roland Barthes para interrogar como se tem feito a recepção da voz de Michel Foucault em seu curso de 1982 na forma de livro impresso, de modo que essa voz só pode ser acessada pela sua materialização na palavra escrita. Os autores advogam que essa forma específica de contato com a voz de Foucault interfere diretamente nos modos de interpretação e apropriação de suas palavras.

Em seguida, damos lugar ao artigo de autoria de Júlio Roberto Groppa Aquino e de Cintya Regina Ribeiro, O cuidado de si na pesquisa educacional brasileira: uma noção-problema. Este texto mapeia 51 artigos publicados em diferentes periódicos brasileiros da área de Educação, ao longo dos últimos 18 anos, desde a publicação no país da tradução do curso de Foucault, mostrando a fecundidade da noção de cuidado de si para o pensamento educacional.

Em Cuidado de sí e Innovación educativa - Diálogo e ironía, os autores mexicanos Ana Maria Valle Vázquez e Marco Antonio Jimenez Garcia analisam as inovações que podem ser provocadas no campo educativo pela noção de cuidado de si. Centram sua análise no diálogo e na ironia como práticas que possibilitam ao sujeito contemporâneo experimentar a novidade do cuidado de si em suas vidas.

O artigo Sobre a ética foucaultiana do cuidado, o sujeito e a educação: derivas interpretativas 40 anos depois de Hermenêutica do Sujeito, de Pedro Angelo Pagni e Divino José da Silva, foca a problemática ética introduzida por Foucault com a perspectiva do cuidado de si para buscar suas implicações no campo educativo. Os autores denunciam a perspectiva moralizante da educação moderna, que abandonou a dimensão ética da amizade e da estética da existência, problematizando algumas condições para sua recuperação.

Oscar Orlando Espinel-Bernal, pesquisador colombiano, dá continuidade à reflexão ética com o artigo Ética de la palabra. Lectura, escritura y producción de sí, no qual foca os exercícios espirituais da leitura e da escrita no processo de construção ética de si mesmo. Segundo o autor, desta ética da palavra, implicada na leitura e na escrita, deriva uma escrita de si que permite ver as práticas de ensino, formação e pesquisa por outros ângulos.

No texto Recusando o momento cartesiano: como equipar-se em psicologia e educação? Rosimeri Dias e Heliana de Barros Conde Rodrigues fazem a experimentação de “arrancar de si o momento cartesiano”, identificado por Foucault como o responsável pelo esquecimento do cuidado de si na modernidade. As autoras focam sua problematização nos efeitos do momento cartesiano na psicologia e na formação de professores, buscando elementos para pensar esses dois campos diferentemente.

A questão da educação de surdos no Brasil de nossos dias é a base da qual partem Vanessa Regina de Oliveira Martins e Gabriel Silva Xavier Nascimento no artigo Atuação do intérprete educacional e o aprender surdo: análise da posição-mestre na relação educativa em sala de aula inclusiva. As explorações conceituais e analíticas de Foucault são utilizadas para analisar o acontecimento educativo que se produz na sala de aula inclusiva com a presença do intérprete de LIBRAS: que diferenças são produzidas em um tal contexto?

O filósofo e pesquisador francês Alain Patrick Olivier traz para este dossiê uma visão sobre a problemática da emancipação nas relações educativas, ainda que Foucault não tenha pensado nestes termos, em Relation sexuelle et relation pédagogique: à propos du souci de soi et du souci des autres (Relação sexual e relação pedagógica: sobre o cuidado de si e o cuidado dos outros). O autor localiza a preocupação com o cuidado de si no âmbito das pesquisas de Foucault para a história da sexualidade, traçando paralelos entre a relação pedagógica e a relação sexual, visto que ambas implicam um outro (ou outros). Sua intenção é a de colocar em relevo uma dimensão política e institucional que não foi explorada por Foucault.

Por fim, fechamos o dossiê com dois textos que visitam A hermenêutica do sujeito a partir de duas problemáticas contemporâneas. Em É preciso defender a amizade: provas de vida nas guerras de subjetividade das políticas de inimizade contemporâneas, Alexandre Filordi de Carvalho e Sílvio Gallo partem do neoliberalismo contemporâneo e as políticas de inimizade e competição por ele engendradas, para buscar nas lições de Foucault as possibilidades da amizade como técnica de si de forma a produzir contracondutas em relação ao presente político que vivemos.

Jean-François Dupeyron, filósofo e pesquisador francês, também situa suas interrogações no contexto do neoliberalismo contemporâneo, em Pour en finir avec l’enfant du Capital (Para acabar com a criança do Capital). Coloca em questão a criança consumidora e empreendedora de si mesma, nomeada como “a criança do Capital”, para pensar possibilidades de saída desta condição individualizadora, através da exploração da noção de “Comum”, que poderia tanto possibilitar que se pense e se pratique a democracia de outras formas como que se pense e se pratique a educação em outro diapasão, mais sintonizado com o cuidado de si.

Como o leitor pode perceber, trata-se de um panorama múltiplo e diverso, com distintas apropriações do trabalho de Foucault para se pensar a educação no Brasil, em países latino-americanos (Colômbia e Mexico) e na França. Ainda assim, está longe de ser exaustivo e de esgotar as imensas possibilidades abertas pelo curso proferido por Michel Foucault em 1982. Esperamos que as explorações aqui presentes possam levar a nossos leitores contribuições radicais e originais, que suscitem neles o desejo do pensamento e da abertura de novos campos de investigação.

ISSN: 1982-596X

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Palavras-Chave: Dossiê, Foucault, A hermenêutica do sujeito

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