À borda da fumaça e do estralo: Causos, contos, prosas

Thiago Sitoni Gonçalves

Psicólogo e psicoterapeuta; mestre e doutorando em Filosofia pela Unioeste

19/09/2024

de Gabriela Nascimento | Giostri, 2023 | Link para compra

Quantas narrativas suportam o silêncio das palavras? Gabriela Nascimento, bacharel em Direito, Artes Cênicas e Mestranda em Filosofia desperta este questionamento, não apenas pelo seu hall d’entrée acadêmico exuberante, mas, sobretudo, por revelar-se numa escrita que, talvez, as paredes do rigor científico e da dinâmica intelectual tentam esmagar. Das violências de nosso sistema educacional, o mais sofisticado é a tática sistêmica de forjar a crença de que não sabemos palavrear o real, não servimos a escrever conceitos. O que pode uma escrita que se traça no papel sem as amarras da interdição? A este propósito, Gabriela nos convida ao itinerário do não-lugar, de um jeito “originário” de conceber a linguagem, rememorando Merleau-Ponty. Não vivemos na dicção da sintaxe ou da gramática; vivemos a palavra sonora, regionalista, um itálico invisível e em semelhança aos estalos da boca.

Muito parecido com o estilo de nosso Guimarães Rosa, a autora goiana seleciona em arcos, cenários do dia a dia, sem um fluxo de consciência, tampouco nos formatos de romances épicos ou dramáticas. Pela metáfora do copo metálico – aquele onde se bebe a água mais refrescante, dos filtros de barro -, sua prosa é simples. A escrita autoriza-se a duvidar de seus rumos, de situar-se à beira do pão e do café, dedilhar as contas do rosário, contas do passado e do futuro. Singelamente, o copo – ora metálico, ora plástico, ora de cristal – é um recipiente maleável dos seus encontros com o outro e dos afetos que permanecem. Há, sem dúvida, leveza apesar de tratar de uma saudade da ancestralidade e de um esforço por criatividade para seguir

“Ela sempre escreveu alguma coisa solta” – nos brinda a autora – “uma frase, um pensamento, uma coisa ou outra, muitas vezes com nexo, outras, sem nexo, convexo. Só de escrever, anotar, rabiscar, esvaziar, esbaforir, em estado de fúria Medeiana, ainda rasga e queima” (p. 51). Cabe sublinhar: sua simplicidade faz regurgitar por noventa e oito cenas, o que pode um cotidiano quando olhado por uma percepção outra. Que é um vento doce, anunciando novos rumos? Dizeres e crendices em momentos decisivos da vida? Fundos fossos que se sobe e os dedos escapam à matéria argilosa? Esse desafio, caro leitor, é totalmente seu.

Nossa intérprete literária não escapa aos seus autores de cabeceira, um deles, a propósito, é Nietzsche, escritor que fez dos aforismos sua marca. Em certo aspecto, é dele a provocação a respeito da ciência: algum dia, é concebível uma ciência que dê conta de um sorriso epistemológico? A resposta inalcançável – brotada das clássicas (e tanto quanto tediosas) questões da filosofia – pode estar ali, no texto despreocupado de Gabriela. Em dizer e que, fazendo-se, diz para além do que está escrito. Abrir um livro de tamanha envergadura é um convite instigante a prestigiar outras narrativas, brasilidades, sensibilidades de uma mulher, que numa crise existencial, ousou retomar a palavra quando lhe foi interditada sob o codinome de rigor teórico. É sempre hora de ler autores que bancam sua ética de palavrear o real.