Arruaças: Uma filosofia popular brasileira

Marcelo José Derzi Moraes

Professor Adjunto do Departamento de Educação da FFP/UERJ e do PPGBIOS. Coordenador do Grupo de Pesquisa do CNPq Gente. Membro do GT Filosofia Contemporânea de Expressão Francesa da Anpof

17/05/2022

SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz; HADDOCK-LOBO, Rafael.
Arruaças: Uma filosofia popular brasileira.
Bazar do Tempo, 2020 | 200 páginas

Quem quer madrugar, farrear zoar, conhece o caminho, encontra um jeitinho, tem sempre um lugar. Então vamos lá! Ao som de Deixa clarear de Arlindo Cruz, Sombrinha e Marquinho PQD, gravada também por Zeca Pagodinho, podemos dizer de onde vamos partir, de qual lugar vai partir essa resenha. Partimos do bar, do samba, dos copos gelados e das comidas, das conversas e discussões, dos olhares e cheiros, das noitadas e madrugadas; porque, a partir do Arruaças, compreendemos, definitivamente, que a produção de saber pode se dar em muitos lugares. E esse é, também, o meu lugar, já diria Arlindo Cruz e Mauro Diniz.

O problema de escrever sobre um livro do tipo do Arruaças¹ é que, quando você se identifica, ou se encontra, talvez até se perca, é que no fundo já não sabe quem é você e quem é o autor, e quem é ou quem são os autores, de quem são as histórias, se são deles ou dos outros. Primeiro, por causa do alto nível da escrita, que te envolve, te leva, te conduz, te faz dançar, te faz pensar, te leva para a rua, para o bar, para o terreiro, para a mata, para o morro, te leva para qualquer lugar, só não te deixa sentado no sofá no dia de domingo, pelo menos não deveria. Segundo motivo é que, se você for do metiêr, vai achar que as histórias são suas, que fez parte, que contou, que vivenciou, ou até que te contaram, que aconteceu com você. Mas, se você não é do babado, segue os ensinamentos de Leci Brandão e deixa pra lá

O livro faz valer a proposta de um dos autores, Rafael Haddock-Lobo, Arruaças é um livro de FPB – Filosofia Popular Brasileira. É claro que não é o único, é claro que não é o primeiro e não vai ser o último. Quando digo que é o primeiro, é no sentido de como o livro nos toca, estou falando aqui em termos de sentir, desde quando você pega o livro e toca nesse elemento material, cuja capa joga com espaços lisos e em relevo, provocados por uma lixa, que pode te remeter a muitos caminhos, aos chãos lisos ou ásperos das ruas, às paredes lisas ou chapiscadas; quando te encostam no paredão ou quando dá aquela “parada” no caminho, você sente, seja na dura, ou no rala. Mas, também, a lixa do pintor, do carpinteiro, que usa a lixa para mudar, para apagar, para transformar; do shape do skate, que segura, mas escapa; o grosso das mãos calejadas; do liso das peles macias que, cuidadas ou protegidas, não se deixam maltratar; do liso do asfalto em que os carrinhos de rolimã passam derrapando; do arrastar a bunda no chão no mergulho da roleta na ida ou na volta da praia; do encontro com o vento no surf do asfalto; do passar o mês liso, mas guardando aquele da tendinha; do liso das caras de paus dos hipócritas; do liso das mangas que pegamos nos pés nos subúrbios; ao tocar o livro, uma sensação, um encontro acontece, você pode acolher ou pode rejeitar. O jogo já começa ao pegar o livro. A pegada tem que ser firme, mas a leitura tem que ser como o coração de sabiá. Arruaças invoca uma Filosofia dessa Coisa de Pele. Arruaças é o primeiro, porque assumiu o cruzo com tudo o que constitui o Brasil em suas mais diversas heranças, sejam elas herdadas ou inventadas. O livro não cai em pelo menos três armadilhas: a da democracia racial; a do mito das três raças; e a da hierarquia das culturas. O livro assume o caráter plural da formação brasileira, de suas heranças, não nega as mestiçagens, as identidades e os cruzos, sejam eles violentos ou acolhedores, impostos ou negociáveis, inventados ou escamoteados. Além disso, o livro joga com a mistura das mestiçagens, apontando inclusive seus limites, definidos ou ocultados.

Arruaças conjura todas as hordas e falanges de espíritos e espectros, de fantasmas e assombrações culturais, étnicas, raciais que deram forma ou desforma às filosofias produzidas no Brasil. Para além do mito das três raças, os arruaceiros deslocam hierarquias e trazem para a gira, além dos elementos indígenas e africanos vítimas da violência colonial, culturas e grupos de uma Europa marginalizada. Revelando os brasis, com letra minúscula e no plural, certamente, uma vez que não há uma pretensão de totalidade, de uma nação única, fechada, concentrada em um centro, um Nós brasileiro. É uma filosofia das margens, do nóix, mas não da margem dada segundo um centro, mas uma margem enquanto escolha, enquanto destruição total de centros e centrismos. É a margem como potência do mundo. É a margem enquanto modo de viver, de ser. É, nas palavras de Mariane Biteti, uma escolha por margear, já que, nem sempre o que está à margem é marginal, e nem sempre o que está no centro é central. Assim, esses arruaceiros margeiam nos centros e nas margens, vadiando e bagunçando o estabelecido, a lógica dominante. É um livro das filosofias vagabundas, como diz Wanderson Flor no prefácio do Arruaças. 

Na verdade, digo que é o primeiro para poder implicar com aqueles amigos da ordem, com os vigias do pensamento.  Mas, na verdade, é sim, o primeiro livro de filosofia popular brasileira. Mas, primeiro não é no sentido cronológico, porque não há esse primeiro. Ora, o livro já mostra para o leitor que não pode ser o primeiro livro de filosofia popular brasileira, já que, malandros, caboclos, boiadeiros, erês, putas, travestis, pombagiras, exus, pretos velhos, entidades, orixás, santos, contadores de história, jogadores de futebol, feiticeiros, bicheiros, sambistas, jongueiros, já faziam filosofia antes deles, e que esses arruaceiros escolheram, ou foram escolhidos, não sabemos, para fazer filosofia com eles. Esses filósofos e filósofas das ruas, das matas, dos terreiros, dos mercados, das praças públicas, do samba e dos quintais escreveram seus livros em muitos receptáculos, em muitas bases, sendo, às vezes, o próprio corpo o livro e a voz a escrita. É claro que estamos aqui implodindo a própria ideia de livro. No formato de bolso, sem começo, meio e fim, textos curtos, sem uma conexão direta, ou uma dependência de ligação entre os capítulos. Arruaças bagunça com a forma.

Ainda pensando em termos de formação, apesar de que o melhor seria pensar em termos de criação, não criação no sentido bíblico, de criação divina, mas, no sentido de ser cria, de ser criado nas ruas, nos livros, em casa, no terreiro, nas escolas, nos bares e, até, nos altares, rompendo, definitivamente, com as heranças coloniais do criado, aquele que serve. Arruaças nos forma para outros códigos, outras línguas, outros sotaques, outras relações e conexões, que rompem e disputam com a língua dominante e predominante. 

É por uma pedagogia das encruzilhadas que Arruaças é um livro sobre lugar, sobre lugares.  É um convite para uma festa, uma festa dos cruzos, para uma festa dos encontros. Na grande festa do Arruaças, os códigos e as regras não estão dadas. Por esse motivo, é importante saber chegar e conhecer o chão que se pisa. É se há uma lei, é aquela anunciada por Dona Ivone Lara: alguém me ensinou para pisar nesse chão devagarinho.

Arruaças é um livro que promove uma cartografia do vadio, uma cartografia de saberes que são produzidos à margem. Daquele vadio que vadia na margem, mas que vadia nos centros; e que, na letra e voz de Leci Brandão, é um maravilhoso vagabundo. A importância disso no livro é que novamente não há um centro, há margens, margens que produzem conhecimentos, que produzem saberes, que produzem histórias, que produzem filosofia. Por essa razão, não há pretensão de impor nada a ninguém, são saberes do lugar, dos lugares. Arruaças invoca os mitos de seres de luz, dos lugares lançados às escuridões e às sombras, e pelas sombras promovem luz, não a luz da razão iluminista, da razão europeia; mas, a luz dos saberes marginalizados, uma luz que não ofusca, que não se pretende iluminadora, que leva à luz ou a luz. Também, não se coloca como única, como centro. Não é da ordem da lógica do farol, metáfora maior do Ocidente, que orienta. É a lógica da luz das velas nas encruzilhadas, que nas esquinas, marcam pontos de chegada, de passagem e de ida, que são acesas nas pontas, não ocupam os centros. Não são luzes demasiadamente fortes para cegar, nem fracas demais que não marquem cada passo no nosso caminhar. Os três aparentemente capítulos ou partes são como velas nas encruzilhadas, que marcam passagem de um momento para o outro, clareiam nosso caminhar nos saberes jogados às sombras, e que das sombras, dos cantos e becos, produzem um ecoar de saberes espalhados pelo país. Arruaças são velas espalhadas pelas encruzilhadas das cidades, dos interiores, das matas, dos sertões, das praias, das montanhas e dos pantanais.


[1] Essa resenha é uma adaptação de uma resenha maior que foi publicada anteriormente em Comparative Cultural Studies - European and Latin American Perspectives. https://oajournals.fupress.net/index.php/ccselap/article/view/13472


Marcelo Moraes é Pós-doutor em Filosofia pela UFRJ. Doutor em Filosofia pela UERJ. Professor Adjunto do Departamento de Educação da FFP/UERJ e do Programa de Pós-graduação em Bioética, Ética Aplicada e saúde Coletiva - PPGBIOS. Coordenador do Grupo de Pesquisa do CNPq Gente (Grupo de Estudos Negritudes e Transgressões Epistêmicas). Membro do GT ANPOF: Filosofia Contemporânea de Expressão Francesa.