Corpos (In)Visíveis

Patrícia Muccini

Doutoranda em Artes Visuais na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP); Integrante do Grupo de Pesquisa Filosofia DEF (UFPI).

05/09/2024

de Fábio Passos, Corpos (In)Visíveis | Editora Mondrongo (2023) 
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Corpos (In)visíveis é uma obra investigativa, artística e filosófica que nos faz adentrar em um processo crítico-reflexivo sobre como e porque uma característica humana foi historicamente deslocada do seu lugar de ordinariedade e mantida como extraordinária até os tempos atuais.

Uma obra que propõe a suspensão de racionalidades legitimadas e o exercício do olhar para os fazeres artísticos que remontam ideias sobre o corpo humano. Ancorado em problematizações como "qual o lócus existencial de corpos "imperfeitos"?", o autor é incansável ao tratar, do início ao fim da obra, sobre a invisibilidade imputada aos corpos DEFs. Expõe de modo minucioso as concepções filosóficas, confrontando-as com obras artísticas e acontecimentos sociais, localizando o foco de análise nos aspectos que invisibilizam o corpo, a cultura e a existência DEF - entendendo o termo enquanto uma posição política sobre a deficiência.

A forma didática escolhida é generosa à comunidade acadêmica, que poderá acompanhar o percurso investigativo com um robusto arcabouço teórico e artístico. A obra discute política, filosofia e estética, utilizando conceitos de pensadores como Merleau-Ponty (carne do mundo), Michel Foucault (poder disciplinar e o assujeitamento dos corpos), Hannah Arendt (política e experiência da liberdade), Judith Butler (modos específicos e pré-determinados de vida), Jacques Rancière (a partilha do sensível e o dissenso), Giorgio Agamben (nudez humana e cultura) Julia Kristeva (abjeção) e muitas outras referências caras aos campos da Filosofia e da Arte, que são postos no debate a fim de problematizar como a característica humana nomeada de Deficiência foi e é abordada nas teorias filosóficas e materializadas nas obras artísticas.

Nesse diálogo são resgatados aspectos históricos, concepções filosóficas e manifestações artísticas em que o corpo com deficiência, direta ou indiretamente, está subalternizado. Ao colocar em debate problemáticas como a recusa à diversidade corporal, a hierarquia estética, e as funcionalidades não convencionais em contraposição ao "sistema econômico normalizado", o autor nos provoca a refletir sobre como e sob qual intuito são construídas as estéticas capacitistas. Em suas palavras: "aqueles que se insurgem contra essas técnicas de controle e dominação são os anormais”.

Além do vasto material filosófico, que traz reflexões para repensarmos a concepção do corpo com deficiência, a obra dialoga também com os trabalhos artísticos realizados em vários momentos históricos, desde os que visavam contribuir para a concepção de corpo ideal (a exemplo do Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci), como também aqueles que propunham estéticas que retratassem a corporeidade do real (expressos nos trabalhos de Joseph Beuys) e, ainda, as obras cujo corpo "antinormativo", terminologia escolhida pelo autor, foi evidenciado (como nas pinturas de Egon Schiele e nas fotografias de Diane Arbus). Além disso, principalmente, as corporeidades DEFs enquanto poéticas, que evocam estéticas existenciais experienciadas em seus corpos, a exemplo dos trabalhos de Mari Katayama e, em destaque, do próprio autor.

Nesse cenário onde a "deficiência é uma possibilidade existencial, e não uma tragédia pessoal ou um castigo divino", a nudez DEF, "que é plural e diversificada", se coloca como ponto central no trabalho investigativo. Por meio das imagens das obras do autor, realizadas no intercâmbio com outros artistas DEFs no percurso pós-doutoral, somos apresentadas(os) à estética da existência das pessoas com deficiência. São 27 imagens dos desenhos do artista, que compuseram sua investigação sobre a nudez DEF. Os trabalhos artísticos, que expõem corpos reais, ativam outras percepções e sensações que, por meio de enquadramentos, cores e ambiências, se distanciam das concepções normativas cujo corpo com deficiência é subjugado. Ao produzirmos outras afecções, nos aproximamos da diversidade humana com apaziguamento e não com abjeção. Nesse exercício do olhar, proposto pelo artista-autor, há possibilidades de deslocamento da percepção universalizante da forma corporal humana e o estímulo para a criação de novos modelos imagéticos que expandem e diversificam a percepção sobre nossa espécie.

Nas imagens, vemos corpos DEFs expostos em sua nudez, despidos da ideia de vulnerabilidade e precariedade que tem lhe servido como vestimenta compulsória. Em contraponto, esses nus revelam outros significados que compõem a ordinariedade da vida, legitimando a condição plural de existência.

Já nas primeiras imagens, nas obras intituladas Abjeto I, III, II, nos deparamos com uma mão que bloqueia a visão sobre o corpo, que se apresenta nu, ora deitado, ora sentado, apenas coberto em parte pela mão que toma destaque na obra. Assim, somos convidadas(os) pelo gesto do autor, em seu autorretrato, a fazer uma pausa para iniciar a experiência estética que está por vir.

 Em cada imagem, somos apresentadas(os) à diversidade corporal que se define em cicatrizes, sorrisos, torções, expressões, amputações, proporções, tatuagens, maquiagens, piercings, cabelos coloridos e cenários que politizam e desconstroem o imaginário trágico e passivo destinado aos corpos antinormativos. A deficiência está mais do que expressa nesses desenhos, enquanto uma característica humana que se apresenta em sua multiplicidade ocupando o lugar do comum, do ordinário, criando outras narrativas possíveis.

Em suma, esse livro, composto de referências filosóficas e artísticas que são atualizadas por meio de exercícios reflexivos e estéticos, subsidia as(os) leitoras(es) a analisarem criticamente as concepções destinadas aos corpos com deficiência. Uma importante obra que se soma às publicações que dão sustentação teórica ao campo de Estudos sobre Deficiência, que se apresenta, de modo transdisciplinar, em emergência.