Direito como Potência

Rose Brito

Doutora em Direito na Università degli Studi di Roma Tor Vergata. Graduanda em Filosofia na UFPR

18/09/2024

de Miroslav Milovic (Metrics, 2023) | Link para aquisição gratuita

“Prolongar uma existência, e prolongá-la de outra maneira – herdar não é isso? –, toma, então, essas formas particulares, aquelas que desviam o curso de uma vida, uma vida agora misturada com o desaparecido e com aquilo que ele deixa. Trata-se de concluir.”[1] Com esse propósito, compartilhamos esta resenha especial do livro Direito como Potência publicado no Brasil pela Editora Metrics e na Sérvia pela Editora Gradac, em 2023. A obra trata filosoficamente da afirmação da vida, do amor e da justiça, na gramática derridiana é uma obra impossível, nas palavras de Blanchot é um livro por vir. Para uns, inacabado; para outros, interrompido.

 O livro contém os últimos escritos do filósofo Miroslav Milovic, o desenlace das suas pesquisas na Universidade de Brasília, a promessa de “outras estradas, outros caminhos, outras fronteiras, outros espaços”[2] na filosofia e no direito. A composição multifacetada dos diálogos é uma experiência inspiradora e um motivo para o livro ser lido para além das fronteiras acadêmicas. Mais que teoria, o livro Direito como Potência propicia ao leitor um encontro com Miroslav Milovic e, na prática, mais uma chance de participar do rastro resplandecente da sua vida e da sua escrita.

O livro está estruturado em seis ensaios, ou melhor, em seis encontros. Herança dos cursos ministrados na Faculdade de Direito, cada ensaio consiste em um convite, um encontro com o professor Milovic e com seus interlocutores: Paulo, Spinoza, Nietzsche, Foucault, Deleuze, Lacan, Agamben, Negri e Derrida. A multiplicidade dos diálogos e a quantidade de interlocutores no livro marca o estilo exuberante e a autenticidade da escrita de Milovic.

O encontro em sala de aula com os estudantes afetou sobremaneira a escrita ensaística de Milovic: “quero agradecer aos meus alunos da graduação e da pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília pelas discussões. Por isso o livro poderia ter também o subtítulo: ensaios sobre a filosofia do Direito”, escreveu em Política e Metafísica (2018). Quanto ao livro Direito como Potência, publicação póstuma, os agradecimentos partem incondicionalmente de nós, leitores, e se fosse requisitado um subtítulo ao livro seria: o eterno retorno do encontro.

No primeiro ensaio, encontramos o amor e a justiça entrelaçados na antifilosofia de Paulo. Inspirado no método de Alain Badiou[3], as epístolas são interpretadas como rastros da militância de Paulo e não como textos representativos de uma religião. Milovic põe em dúvida a temporalidade da história da filosofia ao perguntar se Paulo é um contemporâneo. “Se Paulo está no início do Cristianismo, temos que saber o que aconteceu. Talvez o Cristianismo nem se realizou ainda.”[4]

Os indícios indicam no livro que o encantamento de Milovic não é pelo Paulo apóstolo, mas pelo Paulo subversivo, o militante capaz de uma mudança radical, de uma outra vida, de ser um outro. Na alegoria, isso é simbolizado na queda do cavalo, na mudança do nome e na cegueira de Paulo, que o fez ver o mundo com o coração. No nosso tempo, em que parece não haver mais saída para as catástrofes do capitalismo, para os desastres ambientais e para adiar o fim do mundo, a conversão de Paulo mostra uma ruptura, uma subversão radical. O Paulo de Milovic não é um fanático religioso; é um militante anticapitalista. “O mundo pode ser outro” é o recado de Milovic no diálogo com Paulo.

 A evocação do espiritual, do amor ágape no livro, não significa a defesa da transcendência. Para evitar qualquer mal-entendido, no segundo ensaio, Milovic encontra Spinoza. Neste diálogo, observa-se a aposta de Milovic na natureza, ou seja, na imanência da vida. Sendo assim, a filosofia de Spinoza aparece como uma alternativa às ruínas da modernidade: a liberdade ligada à natureza e não ao contrato social; a potência do direito vinculada à ontologia e não a deontologia; a vida atada à imanência e não à transcendência.

No terceiro ensaio, os interlocutores são Nietzsche e Foucault apresentados, sobretudo, pelas críticas à modernidade. Nietzsche crítico da cultura, da moral e do direito, em defesa da natureza, do corpo e da justiça. Foucault surge em comunicação com os antigos, pela prática do cuidado de si, cuja existência na antiguidade, implicava o cuidado para com os outros e o cuidado para com o mundo como forma de vida. No quarto ensaio, Milovic atravessa o campo da psicanálise com o tema do desejo. Em diálogo com Lacan e Deleuze, elabora a crítica ao neoliberalismo e ao discurso de que o desejo é falta. Ironiza Milovic “não falta nada no desejo. Isso é a leitura do Anti-Édipo contra psicanálise.”[5] No lugar da identidade, do mercado e da falta, aparecem às diferenças, as multiplicidades, os devires, os corpos sem órgãos, os fluxos, os rizomas; no lugar do direito, a jurisprudência e a luta por novos direitos. Milovic explica as razões do título do ensaio ser Direito do Simulacro argumentando que a luta social é dinâmica e não se limita ao enquadramento da lei; lutar por direitos, portanto, consiste também em fazer existir o que a lei proíbe, o que não tem legitimidade, ainda.

O encontro com Negri e Agamben se dá através de uma releitura ontológica sobre o social e um confronto com a noção clássica de soberania.  Com Negri, Milovic destaca o projeto do mundo comum e da multidão enquanto sujeito coletivo; com Agamben, apresenta as dimensões teóricas e práticas da potência, os limites da lei e a potência do direito entrelaçada à justiça. O sexto encontro é o diálogo com Derrida intitulado Pandemia como história. Neste ensaio, a história aparece como palco da violência. O texto envolve três embates teóricos: as críticas de Benjamin à tradição marxista; as críticas de Derrida a Benjamin e as críticas de Derrida a Marx. Na conclusão do ensaio, sobrevém a afirmação da ação política e um otimismo arendtiano que enseja o convite para o próximo ensaio. O livro resta em aberto. Sem fim.

Muito ficou por ser dito e escrito. Neste último livro, neste último encontro com o autor, o aviso que Miroslav Milovic nos deixa nas entrelinhas é reluzente: “(...) tudo na vida tem o estigma da caducidade. Só amar não acaba.”[6] Sendo assim, a potência de prologar a existência de Milovic está entregue aos leitores. Essa é a herança.


[1] Despret, Vinciane. Um brinde aos mortos: histórias daqueles que ficam. N-1 edições, 2023, p. 53.

[2] Ibid, p. 19.

[3] Badiou, Alain. São Paulo: A fundação do universalismo. São Paulo: Boitempo, 2009.

[4] Milovic, Miroslav. Direito como potência. Santo Ângelo: Metrics, 2023, p. 30.

[5] Ibid, p. 62.

[6] Lourenço, Frederico. Amar não acaba. Livros Cotovia, 2004.