História da Filosofia do Brasil

Rodrigo Marcos de Jesus

UFMT/PROF-FILO; Integrante do GT Pensamento Filosófico Brasileiro

14/06/2022

MARGUTTI, Paulo. História da Filosofia do Brasil: A ruptura iluminista (1808-1843)
Editora Loyola, 2020 | 712 páginas

 

Paulo Margutti avança em mais uma etapa de revisão e de reconstrução da história da filosofia brasileira. O segundo volume de sua História da Filosofia do Brasil não só amplia o leque de autores que precisam ser examinados nos próximos estudos sobre a evolução histórica da filosofia brasileira como aponta a necessidade de rever a maneira como encaramos o desenvolvimento da filosofia em nosso país. A obra aborda um período curto e pode surpreender a leitora ou o leitor o espaço – afinal, são quase 700 páginas no corpo do texto! – dedicado a um momento que, na visão de historiadores anteriores, pouca coisa teria deixado digna de consideração. Porém, as opções metodológicas adotadas, a novidade do conteúdo e o cuidado em oferecer uma gama de informações que subsidiem futuras pesquisas tornaram imperiosa a extensão da obra. Com isso, creio, a historiografia filosófica ganhou o estudo mais exaustivo sobre a filosofia brasileira no começo do século XIX. Trabalho que, reconhece o próprio autor, “ainda está incompleto, demandando muito esforço investigativo por parte dos interessados em seguir essa trilha” (p. 686). Trilha, no entanto, aberta e certamente facilitadora para quem resolver se aventurar no campo das ideias filosóficas brasileiras.

O livro dá continuidade à História da Filosofia do Brasil iniciada em 2013 com a publicação da 1ª Parte, referente ao período colonial. Margutti mantém a perspectiva metodológica, inspirada nos princípios da hermenêutica pluritópica (Madina Tlostanova e Walter Mignolo), que passa a chamar de princípio de tolerância hermenêutica. Assim, pretende evitar a visada etnocêntrica dos historiadores da filosofia, a exemplo de Cruz Costa, que viam nas elaborações filosóficas brasileiras imitações malfeitas dos grandes sistemas filosóficos europeus. O esforço de Margutti é o de reconhecer a nossa particularidade cultural e analisar o desenrolar do pensamento brasileiro a partir de sua própria realidade. Isso não implica a exclusão do uso de conceitos filosóficos de origem europeia, mas também não envolve assumir os critérios etnocêntricos europeus no julgamento das ideias filosóficas. Como aponta o autor na Introdução, pretende-se apresentar “as principais doutrinas dos pensadores brasileiros do período [...], mostrando suas qualidades e deficiências, não enquanto medidas por critérios europeus etnocêntricos, mas sim enquanto referenciadas à realidade brasileira, entendida como algo que [...] merece ser considerada por si própria” (p. 22). 

Para apresentar os filósofos do período, Margutti repete a estratégia utilizada no primeiro volume, aprimorando-a. Articula dois métodos: o lógico e o histórico. Isto é, combina a análise interna da obra, das conexões lógicas que a estruturam, com a investigação das relações causais entre texto e contexto, alcançando o papel histórico representado por determinada obra. Ao proceder dessa forma, busca aproveitar as vantagens e evitar as dificuldades de cada método, o que permite uma melhor compreensão dos autores, dada a atenção ao texto e à especificidade da situação brasileira.

Na exposição dos pensadores, Paulo Margutti segue, em geral, as seguintes etapas: a) biografia do autor; b) principais doutrinas de cada obra relevante; c) principais interpretações sobre o autor; d) apresentação de ideias de autores estrangeiros importantes para a compreensão do autor; e) interpretação própria do pensamento do autor em confronto com as interpretações apresentadas anteriormente; f) avaliação geral do autor. Tal procedimento possibilita uma visão bastante detalhada e organizada do pensamento dos filósofos, além de fornecer um quadro amplo e atualizado acerca de suas principais interpretações.

Os pensadores estudados são: Silvestre Pinheiro Ferreira, Diogo Antônio Feijó, Frei Caneca, Monte Alverne, Nísia Floresta, Marquês de Maricá e Manoel Joaquim de Miranda Rego. Alguns desses receberam, em proporções variadas, atenção de outros historiadores da filosofia brasileira, casos de Silvestre Pinheiro, Diogo Feijó, Monte Alverne e Frei Caneca. Outros obtiveram maior repercussão em trabalhos sobre política ou literatura, a exemplo de Nísia Floresta e Marquês de Maricá. E há quem, como Miranda Rego, foi praticamente ignorado. Trazer à baila esses pensadores, inscrevendo-os na história da filosofia brasileira, é um dos méritos do livro. Ressaltaria, desse elenco, a presença de Nísia Floresta, pensadora que nos últimos tempos tem sido bastante estudada em outras áreas e começa a ganhar espaço nas pesquisas filosóficas. A importância de Nísia para a filosofia é demonstrada por Paulo Margutti tanto em sua História da Filosofia do Brasil quanto em seu livro Nísia Floresta, uma brasileira desconhecida: feminismo, positivismo e outras tendências (Editora Fi, 2019), que aprofunda a investigação sobre a filósofa.

Com relação aos autores analisados, convém observar três pontos. Primeiro, a promessa de uma obra específica sobre Silvestre Pinheiro Ferreira. Apesar de ser o autor com tratamento mais extenso, Margutti indica (p. 23, 645) que nem tudo pôde ser devidamente explorado no livro e uma futura obra apresentará maiores detalhes sobre o filósofo. Pelo jeito, Silvestre Pinheiro, mesmo sendo um dos pensadores privilegiados pelos estudiosos da filosofia brasileira e portuguesa, continuará a render novas pesquisas. O segundo ponto é o redimensionamento de autores. No primeiro volume da História da Filosofia do Brasil, Margutti tratou, de modo reduzido, o período da ruptura iluminista e elencou, dentre os autores, Hipólito da Costa. O volume em questão retoma esse intelectual, que recebe um tratamento mais detido, no entanto, sem distingui-lo como um dos filósofos do período. Hipólito passa a figurar apenas como crítico de Silvestre Pinheiro. O terceiro ponto é a indicação de outros autores que mereceriam análises mas ficaram de fora devido questões de tempo e espaço reservados para a pesquisa que culminou no segundo volume. Margutti aponta que Visconde de Cairu e Ana Eurídice Eufrosina de Barandas (p. 19) também poderiam entrar no rol de pensadores abordados. Fica, assim, a sugestão para eventuais interessadas/os em ampliar a pesquisa sobre o período.

As análises dos autores selecionados levaram Margutti a identificar uma visão de mundo comum no período. A noção de visão de mundo já tinha sido utilizada no primeiro volume e é aqui melhor explicitada a partir do diálogo com Dilthey. Para Paulo Margutti, a visão de mundo é um recurso metodológico. Ela é obtida a partir da comparação entre as diversas filosofias de uma época e da conjunção posterior de seus elementos comuns. Trata-se de uma matriz de pensamento. No caso do período da ruptura iluminista, a visão de mundo é caracterizada por uma compreensão da religião como acima da filosofia (philosophia ancilla religionis), pela conciliação entre empirismo e racionalismo (o empirismo espiritualista) e pelo liberalismo político (de corte moderado). Do ponto de vista teórico, predominam os problemas ligados à teoria do conhecimento, à lógica, à dualidade corpo-alma, à liberdade e à filosofia da natureza, numa perspectiva universalista. Do ponto de vista prático, prevalecem os problemas centrais da realidade brasileira da época como, a educação da mulher, a situação dos indígenas e dos escravizados africanos, o celibato clerical e o regime político ideal. Todos esses problemas, teóricos e práticos, são enfrentados desde uma visão de mundo filosófico-religiosa e refletem a influência do etnocentrismo europeu.

História da Filosofia do Brasil (1500-hoje): 2ª parte - A ruptura iluminista possui muitos pontos positivos. Demonstra a capacidade de diálogo do autor com diferentes vertentes da pesquisa filosófica, num exercício prático de superação da esquizofrenia da comunidade filosófica nacional marcada pela ausência de diálogo. Além disso, testemunha um processo contínuo de pesquisa disposto a reconsiderar posições, como ilustrado na revisão da periodização adotada no volume inicial e nas ponderações acerca da necessidade de incluir os dados de pesquisas recentes como as de Lúcio Álvaro Marques sobre o período colonial. É considerando esse espírito de abertura que faço um senão ao livro: a afirmação sobre a ausência de ideias filosóficas de africanos e indígenas no período tratado (cf. p. 16 e 659-660). Não seria tão peremptório. Dadas as pesquisas mais recentes sobre filosofias africanas, afro-brasileiras e indígenas no país colocaria pelo menos em suspeição a afirmativa histórica de uma ausência. Ademais, valeria a pena investigar manifestações importantes do período da ruptura iluminista, como a Revolta dos Malês, a fim de analisar a presença ou não de ideias filosóficas, mesmo que expressas e transmitidas em outros formatos que não os convencionais. A concepção de filosofia e os princípios metodológicos assumidos por Margutti permitem tal abertura. O volume 1 de sua História da Filosofia do Brasil inclusive ilustrou isso ao discutir as cosmovisões indígenas e africanas, uma inovação para a pesquisa histórica. Ademais, o próprio Margutti nos diz que no próximo volume tratará da contribuição da biografia de Mahommah Baquaqua, autor africano escravizado no Brasil que se refugiou nos EUA. Desse modo, soaria estranho que a contribuição de africanos e indígenas conste no começo da história da filosofia brasileira, suma no meio e reapareça depois.

Enfim, quem se aventurar pela história da filosofia apresentada por Margutti descobrirá uma parte ainda pouco conhecida de nossas ideias e terá em mãos uma ferramenta imprescindível para um melhor conhecimento de nossa história.