História Sul-Americana da Imortalidade (a partir de rumores com sotaque)

Joaquim Barbosa

Mestrando em filosofia no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UnB, membro do grupo de pesquisa ANARCHAI

16/09/2024


de Hilan Bensusan, História Sul-Americana da Imortalidade
Editora Cultura e Barbárie | 
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Imortalidade, sim, e ela teria uma história. E mais, uma história regional; associada a este continente, a esta porção de terra que testemunhou tanta limpeza étnica e tanta obliteração de corpos cativos em cenas de subjugação. O livro não defende uma tese acerca da imortalidade e nem sobre sua história, mas conversas sobre teses, convicções, alusões, insinuações e práticas que dizem respeito, por exemplo, à diferença entre o envelhecimento interminável – o mundo é vertiginosamente velho – e o fim – que sempre deixa restos . Assim é a conversa do livro. Duas coisas chamam a atenção em um contato imediato com História sul-americana da imortalidade – (a partir de rumores com sotaque). Já numa primeira folheada percebe-se uma escrita que se desenha aos moldes dos diálogos platônicos, essa forma de discurso convidativa e enigmática em suas possibilidades de interpretação, disseminação, ramificação e herança. A segunda coisa é que o texto catapulta o diálogo do mar entre Atenas e Elea para a Libia, para a terra Krahô, para Mali, para o mato no Brasil e o quilombo na Colômbia. E tem lugar na fronteira arquetípica entre Tijuana e Chula Vista e se projeta para muitas regiões da periferia do capitalismo onde as fronteiras são como as cercas “se multiplicam por toda parte, são infecciosas”. A história é sul-americana.

Esse trânsito entre forma grega e as localidades menos facilmente mapeadas ocorre de maneira a atentar para o que poderia ter tido lugar. Encara-se trilhas ainda não recusadas à época de Platão. Trata-se de “um exercício de anarqueologia”: uma tentativa de “ajustar contas com o que deixou de acontecer”; uma historicidade alheia ao que à força fundadora que o passado oficial carrega. A história – que, como pelo menos quase sempre, aparece em uma conversa – fica colhida na fronteira com o que tomou outro rumo; na fronteira entre memória e imaginação. Ou entre o esquecimento e a persistência na forma da reencarnação, da digestão, da reformatação. A imortalidade evoca a impossibilidade do nada – se ele é impossível, como insinuou Emanuele Severino, então não há uma atração pela salvação, em forma religiosa, ou pelo que permanece, na forma de uma metafísica do subsistente. Severino entende que o parricídio platônico promoveu uma deflação da permanência, a introdução do nada é uma quebra no arquivo em que ficam todas as coisas. Mas o nada surge pelo outro, e o livro traz de volta o “Estrangeiro”, agora, entretanto, muito mais velho, talvez velho demais, ou mais do que pode suportar, com múltiplas rugas e escaras. Talvez ainda lembre algo daquele que desfilou seu nada exuberante pelas ruas. Náufrago, sobrevivente, largado na costa da Líbia, encontra uma refugiada. Conversam e retornam juntos à Europa (por mais que ela nunca tenha estado no continente europeu, ela o conheceu de outras formas, por violências e filosofias, “o niilismo da Europa cria espaços, é um anfitrião”). É nessa viagem pelo mar em direção a Lampedusa que o Estrangeiro e a Refugiada repensam o ser e o esquecimento, Parmênides e a imortalidade, a velhice e a propagação das conversas gregas com o nome de ‘filosofia’.

O Estrangeiro retorna até próximo de sua terra, mas não sua vida não é imortal. Seu corpo fica então nas mãos da Refugiada que toma uma decisão que faz lembrar a quem escuta este relato, na fronteira do México com os Estados Unidos, as cartas de uma mexicana que trabalhou como empregada doméstica na casa de Oswald de Andrade em seus últimos anos de vida. Transita então outro muito velho, ou mais que velho, como Koyan Bebe, o tupinambá imortalizado por Hans Staden, no livro “Viagem ao Brasil”. Ainda acreditamos nesse pós-vida? Koyan Bebe permanecia intermitente no meio da mata. Entre aparição e a longevidade, ele encontra então a Doméstica que teve seu interesse por todas as coisas canibais irremediavelmente despertada na casa de Oswald e que já perdeu a fé nas coisas brancas, “sobretudo nas coisas de depois da morte”. O ultravelho indígena aparece e fala sobre a ache vwa dos guarani, dos guayaki, mas não também dos aimoré, dos krahô e até dos wendat . A alimentação sugerida reconsidera o preparo, o ritual, a fome e a digestão, quando engolimos fatos, origens e carnes. É esse dedicado comedor de carne humana já obrigado a muito tempo a mudar de dieta e a Doméstica que conversam sobre o cuidado dos mortos, o cuidado com a sobrevida e, também eles, sobre memória, conjuração e tudo aquilo que fica arquivado nas carnes. Konyan Bebe tem um fim que parece o do Estrangeiro, e a Doméstica resolveu, também ela, fazer o mesmo que a Refugiada quando vê seu corpo sem vida em suas mãos.

Tudo isso faz lembrar, na conversa de Tijuana, a um encontro de uma Miçangueira com Catalina Loango, de quem não se sabe se morreu e retorna ou se sobrevive com intermitência nas águas. Catalina Loango aparece à Miçangueira, interessada no combate contra-colonial entre sombras, como uma estaca entre a vida e a imortalidade – e também entre a memória e a imaginação. As duas conversam sobre memória e resistência, e sobre o esquecimento por completo, impossível, talvez tão impossível quanto o nada… Catalina também termina quase nas mãos da Miçangueira, a lua já vai alta, cheia, vista de dentro da lagoa, como se esquecesse de marcar as horas. O livro termina também com uma refeição. O resto é história.